Em regra, os salários não podem ser penhorados para o pagamento de dívidas não alimentares. Contudo, em decisão recente, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu uma exceção, permitindo a relativização desse princípio, em caráter excepcional, desde que preservado valor que assegure subsistência digna para o devedor e sua família.
A decisão se deu a partir da análise de embargos de divergência pela Corte Especial e vale para todas as verbas de natureza salarial, independentemente do montante recebido por quem está em dívida.
O relator do caso, ministro João Otávio de Noronha, destacou que essa relativização somente deve ser aplicada "quando restarem inviabilizados outros meios executórios que garantam a efetividade da execução", e desde que "avaliado concretamente o impacto da constrição sobre os rendimentos do executado". A posição foi acompanhada pelo colegiado.
Segundo o STJ, os embargos de divergência foram interpostos por um credor contra acórdão da Quarta Turma que indeferiu o pedido de penhora de 30% do salário do executado – em torno de R$ 8.500. A dívida objeto da execução tem origem em cheques de aproximadamente R$ 110 mil.
Segundo a advogada Angélica Mota, presidente da Comissão de Direito de Família da OAB-CE, "atualmente, a lei estabelece que o salário, assim como outras verbas de sustento do trabalhador, é impenhorável. Isso quer dizer que ele não pode ser usado para o cumprimento de qualquer obrigação".
Contudo, explica a advogada, existem duas exceções. "A proteção não se aplica quando o assunto é pensão alimentícia ou quando a remuneração do devedor superar o limite de 50 salários mínimos mensais", disse.
O que houve é que, recentemente, com a decisão do Superior Tribunal de Justiça, os devedores que ganham bem menos do que isso poderão ter seus salários penhorados, pois foi flexibilizada a regra legal que proibia a penhora do salário do devedor"
O que a maioria dos ministros julgou é que "a previsão legal não condiz com a realidade brasileira e entenderam que a medida pode ser determinada em caráter excepcional desde que preservada a dignidade do devedor", reforçou.
O que significa a decisão e os problemas que ela traz
Em resumo, diz Angélica Mota, o efeito prático é que "todo valor que exceder os 50 salários mínimos pode ser penhorado. Se a remuneração for menor que isso, cabe ao julgador avaliar se é ou não o caso de penhora. No caso concreto, se o juiz verificar que a pessoa não precisa de 40, 30, 20 salários mínimos para viver, mas apenas de 10, o restante poderia ser penhorado".
A advogada entende que os profissionais liberais e empregados com alta remuneração serão os principais impactados inicialmente. Contudo, segundo ela, há problemas na decisão.
Em tese, todos os devedores assalariados podem ser atingidos, pois dependerá do caso a caso. Isso traz uma série de dificuldades por haver diversas variáveis a serem consideradas, como o preço do custo de vida de cada um, como aluguéis, escola dos filhos, gastos com saúde"
"Houve a flexibilização de uma regra objetiva sem que fosse colocada uma outra regra no lugar, trazendo muita subjetividade. As decisões terão que ser muito bem fundamentadas e isso é sempre um ponto sensível", concluiu.
Hipóteses em que pode ocorrer a penhora de salários
Ao avaliar o caso, a Quarta Turma do tribunal entendeu que a jurisprudência do próprio STJ se firmou no sentido de que a regra geral da impenhorabilidade das verbas de natureza salarial comporta exceção nas seguintes hipóteses, como destacou acima Angélica Mota:
- para o pagamento de prestação alimentícia de qualquer origem, independentemente do valor da remuneração recebida;
- para o pagamento de qualquer outra dívida não alimentar, quando os valores recebidos pelo executado forem superiores a 50 salários mínimos mensais, ressalvando-se eventuais particularidades do caso concreto.
Em ambas as situações, deve ser preservado percentual capaz de assegurar a dignidade do devedor e de sua família.
Entretanto, o credor apontou precedentes da Corte Especial e da Terceira Turma que condicionaram o afastamento do caráter absoluto da impenhorabilidade das verbas de natureza salarial apenas ao fato de a medida constritiva não comprometer a subsistência digna do devedor e de sua família, independentemente da natureza da dívida ou dos rendimentos do executado.
Segundo o ministro João Otávio de Noronha, a divergência estava em definir se a impenhorabilidade, na hipótese de dívida de natureza não alimentar, estaria condicionada apenas à garantia do mínimo necessário para a subsistência digna do devedor e de sua família ou se, além disso, deveria ser observado o limite mínimo de 50 salários mínimos recebidos pelo devedor.
Relativização da regra da impenhorabilidade do artigo 833 do CPC
Para o relator, o Código de Processo Civil (CPC), ao suprimir a palavra "absolutamente" no caput do artigo 833, passou a tratar a impenhorabilidade como relativa, "permitindo que seja atenuada à luz de um julgamento principiológico, em que o julgador, ponderando os princípios da menor onerosidade para o devedor e da efetividade da execução para o credor, conceda a tutela jurisdicional mais adequada a cada caso, em contraponto a uma aplicação rígida, linear e inflexível do conceito de impenhorabilidade".
O ministro afirmou que esse juízo de ponderação deve ser feito à luz da dignidade da pessoa humana, que resguarda tanto o devedor quanto o credor, e mediante o emprego dos critérios de razoabilidade e da proporcionalidade.
A fixação desse limite de 50 salários mínimos merece críticas, na medida em que se mostra muito destoante da realidade brasileira, tornando o dispositivo praticamente inócuo, além de não traduzir o verdadeiro escopo da impenhorabilidade, que é a manutenção de uma reserva digna para o sustento do devedor e de sua família"
Dessa forma, o relator entendeu que é possível a relativização do parágrafo 2º do artigo 833 do CPC, de modo a se autorizar a penhora de verba salarial inferior a 50 salários mínimos, em percentual condizente com a realidade de cada caso concreto, desde que assegurado montante que garanta a dignidade do devedor e de sua família.
Com informações da Secretaria de Comunicação Social do STJ.