Com todo o respeito a quem pensa diferente, mas, nestas celebrações pelos primeiros 30 anos do Plano Real, o cearense Ciro Gomes precisa de ser lembrado a bem da verdade histórica.
Este colunista foi testemunha dos quatro intensos meses que, entre 7 de setembro de 1994 e 31 de dezembro do mesmo ano, marcaram um período de grave ameaça contra o mais bem elaborado plano de ajuste fiscal e monetário de que se tem notícia na história da economia mundial – o Plano Real.
Urdido por um time de geniais economistas, entre os quais brilhava a estrela de Edmar Bacha – o criador da Unidade Real de Valor, a URV, que, durante um certo período, corrigiu diariamente o valor da moeda nacional da época até chegar ao seu valor Real, nome da nova moeda – o Plano Real salvou o Brasil do abismo, livrou-o da hiperinflação, devolveu-o ao respeito mundial, mas até que tudo isso acontecesse houve 120 dias de gigantescos desafios a enfrentar.
É sobre eles o que virá a seguir.
Quem enfrentou essa turbulência foi um cearense de 36 anos, nascido na paulista Pindamonhangaba e transportado para Sobral aos seis anos de idade. A ele foi conferida pelo então presidente da República, Itamar Franco, a tarefa de enfrentar e vencer os touros e os leões do mercado financeiro e do empresariado.
O presidente Itamar Franco – que substituíra Collor de Melo, cassado por corrupção – já havia trocado três ministros da Fazenda, o último dos quais, o diplomata Rubens Ricúpero, bateu com a língua nos dentes e disse – no intervalo comercial do “Bom Dia, Brasil”, da Rede Globo, coisas que não se diz.
E Ricúpero disse, entre outras coisas, o seguinte: “Eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde”.
Era um fim de semana. O mercado mostrava-se – como sempre – agitado com a possibilidade de chegar a segunda-feira sem um ministro da Fazenda. Itamar Franco, ele mesmo, telefonou para Ciro Gomes e o convidou para ocupar o principal ministério do seu governo.
Ciro ponderou: era muito jovem, talvez não tivesse a experiência que a função exigia. O presidente insistiu. Ciro pediu 24 horas para consultar algumas pessoas. Obtido o consentimento, fê-lo: ouviu, em primeiro lugar, seu pai, José Euclides Ferreira Gomes; depois, seu amigo-irmão Tasso Jereissati. Os dois o aconselharam a mudar-se para Brasília.
Em seguida, consultou Fernando Henrique Cardoso, que, candidato, estava no Sul do país em campanha pela presidência da República contra Lula.
FHC – do mesmo PSDB de Ciro Gomes – foi sincero ao dizer ao então governador do Ceará, dono do maior índice de popularidade de todos os governadores da época, que ele não era o nome de sua preferência para o lugar de Ricúpero, mas o incentivou a aceitar o convite.
Ciro ligou o telefone para o presidente Itamar Franco, a quem disse: “Presidente, ouvi quem deveria ser ouvido. Aceito o seu honroso e desafiador convite”.
Um jatinho da FAB veio, horas depois, a Fortaleza e levou para Brasília o futuro ministro da Fazenda e ex-governador do Ceará. A bordo da aeronave, além de Ciro Gomes, este colunista, que seria o seu assessor especial de imprensa.
No dia seguinte, Ciro teve uma reunião com os integrantes da muito famosa equipe econômica do Plano Real, liderada por Pedro Malan, então presidente do Banco Central. Da equipe faziam parte, além de Edmar Bacha, outros economistas geniais, como Gustavo Franco, Pérsio Arida, Winston Fritsch, Murilo Portugal e Helena Landau.
“Vocês estão mal protegidos”, disse-lhes Ciro Gomes, acrescentando:
“Vou dar-lhes toda a proteção de que precisam. O Plano Real é genial, é o estado da arte, e o país não pode renunciar à única e última oportunidade que tem de jogar no lixo a inflação e dar ao país uma moeda forte”, afirmou Ciro Gomes com outras palavras.
Os rapazes da equipe econômica, silentes, trocaram olhares e sorrisos.
No dia 7 de setembro de 1994, feriado nacional, Ciro tomou posse do ministério da Fazenda. E prometeu defender o Plano Real. Promessa cumprida à custa de muito sacrifício.
Os empresários, principalmente os do varejo, não pareciam conformados com o fim da inflação. O Real acabara com os fáceis ganhos financeiros. Nos supermercados, por exemplo, a maquininha de aumentar preços foi substituída pela necessidade de controlar estoques, de fiscalizar entradas e saídas, de cortar custos.
A inflação desabou e criou um buraco negro na gestão das empresas, que foram obrigadas a buscar produtividade na indústria, no comércio, no agro e nos serviços. Os preços deixaram de subir. O dólar passou a valer o mesmo que o real, sem qualquer passe de mágica, sem pirotecnia.
Mas os juros foram para o espaço e com eles vieram os dólares especulativos que lastrearam o lado cambial do Plano Real.
Poucos dias depois de sua posse, Ciro viu-se diante de uma greve dos metalúrgicos do ABC, que logo encontraram um caminho tradicional de encerrá-la, por meio de um acordo com os representantes dos patrões – a Associação Nacional dos Fabricantes dos Veículos Automotores (Anfavea).
Os representantes dos dois lados foram de São Paulo ao Rio, onde Ciro se encontrava, desembarcando do mesmo jatinho, “e quando isto acontece ou o Tesouro Nacional ou o consumidor sai perdendo”, como observou Ciro na época.
O ministro não gostou de alguns termos do acordo, considerando-os contrários aos fundamentos do Plano Real, que poderia ali ser ferido de morte. O PT não gostou da interferência de Ciro, mas a greve terminou sem que fosse arranhada a integridade do Real.
Na primeira semana de outubro de 1994, houve em Madri a Assembleia-Geral do Fundo Monetário Internacional (FMI). Ciro – acompanhado de toda a equipe econômica e do seu assessor de imprensa – compareceu e falou sobre o Plano Real.
O diretor-geral do FMI, Michael Candessus, escutou do ministro da Fazenda brasileiro o seguinte:
“Se nós tivéssemos ouvido o FMI antes de implantarmos o Plano Real, não teríamos o êxito que tivemos”.
Concordando com o que ouviu, Candessus não moveu um músculo.
O PT e o PSDB já enxergavam em Ciro Gomes um adversário a ser enfrentado proximamente. A mídia nacional, por sua vez, já se manifestava: uma parte a favor de Lula, outra parte a favor de FHC. O todo contra Ciro Gomes.
Quando retornou de Madri, desembarcando de um avião da Varig no Galeão e imediatamente embarcando num jatinho da FAB com destino a Fortaleza, onde votaria em FHC para presidente, o ministro Ciro, na entrada de sua seção eleitoral, no Colégio Santo Inácio, foi inquirido pela jornalista Leilane Neubarth, da TV Globo:
“Os empresários da indústria querem aumentar o preço dos seus produtos. O que o senhor acha disso?”
No melhor modo Ciro Gomes de dar respostas, ele disse:
“Acho uma canalhice, pois eleição não é item de custo de qualquer empresa ou de qualquer mercadoria”.
No Fantástico da TV Globo do mesmo domingo e nas manchetes dos jornais da segunda-feira, como se tudo estivesse combinado, estava lá:
“Ciro chama empresários de canalhas” – a manchete estava correta. Foi o que disse, intencionalmente, o ministro.
Para evitar a subida dos preços, o governo, por sugestão da equipe econômica apoiada por Ciro Gomes, reduziu – e põe redução nisso – a tarifa de importação de centenas de produtos, irritando o empresariado industrial, que protestou pela voz do presidente da Fiesp, Carlos Eduardo Moreira Ferreira. A mídia tonificou o protesto e ampliou as manchetes e os títulos contra o ministro da Fazenda.
Diante da crescente guerra do empresariado contra essas medidas, reverberadas insistentemente pela imprensa, Jacks Rabinovich, chefe do Grupo Vicunha, reuniu Ciro e um grupo de empresários em seu apartamento em São Paulo. Objetivo: apaziguar os ânimos.
Ciro começou a reunião, dizendo o seguinte:
“Bem, se os senhores nunca conheceram o interesse público, aqui está ele. Sou eu.”
E convocou os presentes para uma reflexão sobre o Brasil e sua economia. Falou sobre o Plano Real, cujas virtudes estavam na alegria das pessoas nos supermercados e nas feiras livres, agradavelmente surpresas com os preços estabilizados. Era um ganho extraordinário que não poderia ser desperdiçado pelo interesse deste ou daquele grupo de pressão. O que estava em jogo era o futuro do país, e isto dependia principalmente do comportamento dos agentes econômicos.
Um dos presentes – presidente de uma grande empresa multinacional de lacticínios – ousou afirmar, com outras palavras, o que se segue:
“Se persistir essa situação, minha empresa terá de fechar suas fábricas aqui no Brasil”.
Ciro engrossou e aumentou o volume de sua voz para contestar:
“Faça isso e sua empresa (citou-a ao falar) o demitirá por incompetência. O senhor terá de explicar o inexplicável: como abandonar um mercado do tamanho do Brasil?”
Num sábado de novembro, por volta das 13 horas, cansado de tanto apanhar dos jornais e dos colunistas de economia, o ministro Ciro Gomes, na companhia do seu assessor de imprensa, foi ao Plataforma, um grande e muito frequentado restaurante do bairro do Leblon, no Rio Janeiro.
Ao entrar, ele foi demoradamente aplaudido. Houve gritos. Ciro emocionou-se às lágrimas. Entre os que o aplaudiram, havia um grupo de atores e atrizes, entre os quais Patrícia Pilar, cujos olhos brilhavam e cujo sorriso transmitia uma mensagem de apoio e confiança no trabalho do ministro da Fazenda.
Os dois trocaram discretos acenos.
Nessa ocasião e nesse ambiente, Ciro descobriu, então, que havia um Brasil em Brasília e outro no restante do país – aquele completamente distante deste.
É assim até hoje.
Na metade do mês de novembro, este colunista acertou com a Editora Revan a edição de um livro que teria Ciro Gomes como protagonista. Para isto, reuniu num salão do Hotel Caesar Park, em Ipanema, no Rio, os jornalistas Miriam Leitão, Suely Caldas, Ancelmo Góis, Geneton Moraes Neto e Marcelo Pontes, que durante a manhã e a tarde de um sábado entrevistaram o ministro da Fazenda, abordando todos os temas, principalmente os políticos e os econômicos.
Dessa longa entrevista – “uma maratona”, como opinaram Ancelmo Góis e Miriam Leitão – resultou o livro “Ciro Gomes no País dos Conflitos”. Na contracapa do livro, está escrito algo que, na época, era incontestável: “Ciro Gomes é considerado pela crônica especializada a maior revelação da política brasileira pós-ditadura.”
O ano de 1994 avançava, ao mesmo tempo em que se aproximava a posse de FHC, que vencera Lula na eleição presidencial. Mas, antes do fim do ano, houve algo que merece ser lembrado. Em uma noite de descontração, reunida em um churrasco com o ministro da Fazenda, a equipe econômica despedia-se de Ciro Gomes.
Segurando um espetinho de carne bovina, Gustavo Franco disse a ao assessor de imprensa de Ciro que o Bancesa, um tradicional banco cearense, seria liquidado nos próximos dias pela Autoridade Monetária. Surpreso, o fiel assessor transmitiu a notícia ao ministro, que estava ao lado:
“Ciro, Gustavo Franco está a me dizer que o Bancesa será fechado.”
Tranquilo, mas pondo força na voz, Ciro disse aos presentes:
“E qual é o problema? Não há nem haverá problema.”
E, dirigindo-se a Gustavo Franco, deu-lhe uma instrução:
“Traga-me a liquidação do Bancesa, mas traga também a do Banespa (Banco do Estado de São Paulo) e do Banerj (Banco do Estado do Rio Janeiro) para eu assinar tudo de uma vez só.”
No 31 de dezembro de 1994, os três bancos foram liquidados.
No dia 1º de janeiro de 1995, Fernando Henrique Cardoso tomou posse da presidência da República e empossou o seu ministério, do qual não fez parte Ciro Gomes, que viajou aos EUA para, a convite, estudar sobre a economia mundial como aluno visitante da Universidade de Harvard, onde conheceu o professor Mangabeira Unger, com quem começaria outra história.