Roberto Machado: quando o pensamento encontra o arquivo

O filósofo Roberto Machado, que nos deixou recentemente, era um homem, um intelectual, de gestos muito significativos. Quem teve a sorte de conhecê-lo pessoalmente lembra que sua própria presença física, corporal, se fazia através de gestos repetidos e marcantes: a expressividade das mãos, muitas vezes levadas até o rosto, quando seus olhos se tornavam pensativos, meio que distantes, compunham a própria imagem do pensador, de alguém que está visualizando algo não visível e que irá ser materializado através da fala, sempre clara, didática, rigorosa. 

O belo sotaque do menino nascido e crescido no Recife, em 1942, servia de adorno as suas falas, sempre meditadas, sempre criativas, nascidas de muitas horas de leitura, de anotações, de frequentações a bibliotecas e arquivos. As pausas significativas com que pontuava suas digressões serviam como alerta de que o pensamento inovador, que rompe com a doxa, com o sentido comum, se faz no silêncio, na ruminação. Aprendi com ele que, às vezes, se faz mais pelo pensamento se quedando em silêncio do que alimentando a polêmica, a opinião.

Já foram muitas e justas as homenagens prestadas a ele. Já se falou muito desse filósofo que nos impressionava, desde o primeiro encontro, por sua própria modéstia, pela falta de arrogância, por certa timidez charmosa, pela fala mansa, por nunca se colocar como dono da verdade, por mais perguntar, questionar, do que ter certezas sobre tudo. Roberto Machado nunca queria pontificar sobre nada, queria ser amigo da sabedoria, sentido mesmo original do ser filósofo, queria fazer do saber algo que aproxima e constrói laços transformadores.

E para ter sabedoria, para se tornar um sábio, é preciso saber escutar, fazer silêncio profundo, saber ouvir o outro com atenção. Roberto Machado sabia que, quem não para de falar, quem está sempre ocupado em emitir opinião, não tem tempo para sequer escutar a si mesmo, tende a repetir as mesmas fórmulas prontas e acabadas, tende a cair nos enunciados já prontos. 

Quem o conheceu é testemunha de como ele era capaz de escutar, de prestar atenção profunda no que se dizia e, depois, fazer suas observações sempre problematizadoras, que te levavam a ver outros ângulos naquilo que falavas. Seu pensamento era inquieto e buscava inquietar, não vomitar certezas.

Queria em sua homenagem, como um historiador que muito foi marcado por seus livros, por suas conferências, pelos poucos encontros que tivemos, ressaltar um gesto do filósofo e professor Roberto Machado: o gesto de ir ao arquivo. Gesto que aprendeu, sem dúvida, com seu professor e amigo Michel Foucault. 

O que fez de Foucault um pensador original, um filósofo único, é que sua filosofia se fazia a partir do arquivo. Ao invés de lidar com esquemas filosóficos abstratos e gerais, onde se procura acomodar todos os eventos, podendo-se, por isso, falar de tudo, Roberto aprendeu com o filósofo francês que, antes de se tratar de qualquer evento passado, é preciso se sujar na poeira dos arquivos, é preciso se embrenhar pelos ditos e escritos do arquivo. Roberto Machado fez da crítica as formas de pensamento e das memórias disciplinares o pão de seu ofício.

Roberto Machado foi um jovem engajado politicamente: foi membro da Juventude Universitária Católica, da Ação Popular e do Movimento de Educação de Base, alfabetizando camponeses da Zona da Mata pernambucana, utilizando o método Paulo Freire. Com o golpe de 1964, foi para a Europa, onde fez seu mestrado na Universidade de Louvain, na Bélgica (1965-1969). Em 1970, retorna ao Brasil indo lecionar na Universidade Federal da Paraíba. 

Entre 1973 e 1981, fez vários estágios no College de France, sob a supervisão de Michel Foucault, sobre quem escreve sua tese de doutorado defendida na mesma Universidade de Louvain, em 1981. Ao se tornar professor da PUC-RJ, Roberto Machado resolve se embrenhar nos arquivos médicos e psiquiátricos do Brasil, procurando dessa forma dialogar de modo criativo com o livro História da loucura, do pensador francês. 

Dessa experiência, feita coletivamente com seus alunos, tal como vira Michel Foucault fazer com o dossiê do parricida Pierre Rivière, nasceu o livro, que teve grande impacto junto aos historiadores brasileiros, Danação da norma: medicina social e a constituição da psiquiatria no Brasil, escrito por ele, Ângela Loureiro, Rogério Luz e Kátia Muricy, publicado em 1977.

Posso testemunhar a importância que essa obra, ao lado do livro de outro pernambucano, também aluno de Michel Foucault, Ordem médica e norma familiar, de Jurandir Freire Costa, publicado em 1979, teve para a circulação do pensamento do filósofo francês entre os historiadores. Enfrentando uma historiografia marcada por um marxismo esquemático, em que as pesquisas serviam apenas para ilustrar e reafirmar as teses prontas, as explicações genéricas e conceituais que já estavam estabelecidas, elas tiveram o mérito de apontar a ida ao arquivo, o compulsar de novos documentos, a consulta as diversas versões e elaborações dos eventos, para além das explicações já consolidadas, como caminhos para sairmos das generalizações e simplificações apressadas. 

O livro que resultou de sua tese, Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault, permitiu a entrada de muitos no pensamento desse filósofo estranho e difícil. Sempre didática e clara, sua escrita rigorosa, fruto de muitas horas de estudo paciente, também nos fez acessar, com outro sabor, o pensamento de Nietzsche e de Deleuze, pensadores para cuja recepção no país, deu grande contribuição.

Assim como Foucault, Roberto Machado desconfiava do poder e das lutas em torno dele. Fugiu sempre de cargos e honrarias acadêmicas. Gostava de fazer amigos no pensamento e não inimigos e desafetos, por isso fugia das disputas estéreis que atravessam o universo acadêmico e cultural. Roberto Machado amava a vida, amava as forças da vida que são a amizade, o amor, a parceria, o diálogo, a dialética das ideias, o partilhar da fala e do sonho, a política cotidiana de se construir coletivos e laços de afeto onde se está, visando o aprendizado e a sabedoria coletivos, a transformação social começando pela forma como se atua em cada lugar onde se está. Nenhum desejo de se sobrepor ao outro, de derrotá-lo, de desqualificá-lo. 

Como um homem que primava pelo pensamento substantivo, Roberto odiava os adjetivos com que as lutas políticas e acadêmicas costumam ser feitas no país. Atribuía a isso nossa miséria mental. Aqui todo mundo tem muito o que dizer e pouco a duvidar e pesquisar. Por isso ele foi pensar a partir do arquivo, lá aprendeu que tudo no social é muito mais complexo do que qualquer fórmula pronta possa dar conta. Com sua morte uma enorme lacuna se abre em nosso pensamento e em nossas vidas. Roberto Machado o amado e inesquecível professor da modéstia e do rigor ao pensar.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.