Os vendilhões do templo chicoteiam o padre Júlio Lancellotti

O sacerdote jesuíta, historiador e etnógrafo francês Michel de Certeau, em um texto que escreveu, ainda no final dos anos sessenta, do século passado, que se encontra publicado no livro “A debilidade do crer”, já prognosticava que o religioso seria mais um aspecto da vida humana do qual o capitalismo se apropriaria. Ele já diagnosticava que a fé das pessoas seria transformada em objeto de disputa, não apenas política e teológica, como sempre foi, mas também no aspecto econômico-financeiro. Ele visualizava a formação do que chamou de um mercado religioso, um mercado da fé, e apontava para o que estava acontecendo nos Estados Unidos, quando os meios de comunicação, notadamente o rádio e a televisão, estavam dando origem a uma nova prática religiosa e permitindo o surgimento de líderes religiosos que, cada vez mais, se assemelhavam as estrelas do show business. O mesmo movimento que estava levando as campanhas eleitorais e os candidatos a cargos públicos a se tornarem figuras fabricadas pelo marketing, pela propaganda, estava se reproduzindo no campo religioso, com dadas lideranças carismáticas usando de técnicas de comunicação e de vendagem de mercadorias, de produção de marcas, para expandirem a audiência de suas denominações religiosas e para, eles mesmos, se constituírem em figuras de grande projeção no espaço da mídia.

Mas, já no início do século XX, o sociólogo alemão, Max Weber, em seu livro que se tornou um clássico, A ética protestante e o espírito do capitalismo, já havia estabelecido a ligação entre o movimento da Reforma Protestante, ocorrida no século XVI, e a emergência de valores, de formas de pensar o humano, a vida humana, os objetivos de vivermos, a própria relação com o sagrado e a emergência da sociedade burguesa e capitalista. O protestantismo, ao romper com a mediação da Igreja, com a necessária intermediação da instituição eclesiástica na relação entre o crente e a divindade, ao pregar a relação direta entre o fiel e Deus, mediada apenas por sua fé pessoal, deu um passo decisivo para que o individualismo, o surgimento das identidades individuais, para que a ideia de que somos indivíduos singulares, que detemos uma dignidade e uma liberdade pessoais, se consolidasse. Esse individualismo, materializado no próprio cisma de dados indivíduos com a instituição da Igreja Católica, abriu espaço para o que hoje se tornou o que poderíamos chamar de empreendedorismo individual, no campo religioso.

Em cada esquina surge uma pretensa liderança religiosa que resolve abrir a sua igreja, a sua denominação religiosa, às vezes, sem que tenha sequer qualquer formação teológica ou doutrinária. Os cismas se sucedem, com pastores deixando suas antigas denominações religiosas para abrir um novo ramo ou dissidência, tal como já era previsto nas denominações protestantes históricas, aquelas surgidas quando da Reforma Protestante (luteranos, calvinistas, batistas, presbiterianos, metodistas), sendo que a motivação principal é amealhar dividendos através da cobrança do dízimo.

As pequenas igrejas se transformam em grandes negócios, inclusive porque elas se tornam verdadeiros currais eleitorais, permitindo a negociação de benesses e troca de favores com lideranças políticas, que querem receber essa votação, ou mesmo permitindo que a própria liderança religiosa se alce à carreira política, onde irá amealhar mais vantagens financeiras.

O protestantismo, ao contrário do catolicismo, que condenava o que chamava de usura, ou seja, a acumulação de riqueza e fazia um discurso de que o pobre era um filho privilegiado do Senhor, condizente com a famosa frase de Jesus de que seria mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus (o que não impediu da Igreja Católica amealhar uma grande fortuna através das doações dos fiéis e cobranças de taxas e emolumentos), vai, em conformidade com o mundo capitalista nascente, valorizar o trabalho e o próprio acúmulo de riqueza. A doutrina da predestinação absoluta calvinista, nesse aspecto, é uma verdadeira revolução, pois faz do sucesso material na vida terrena um sinal de escolha pelo Senhor. Trabalhar e conseguir com o suor do rosto sucesso financeiro seria um sinal de que a pessoa teria sido abençoada e predestinada à salvação.

A chamada teologia da prosperidade, que hoje serve de base para a atuação religiosa de muitas lideranças do campo protestante, seja das denominações religiosas classificadas como pentecostais e neopentecostais, seja daquelas consideradas históricas ou tradicionais, é a radicalização dessa relação entre salvação e sucesso material. O dízimo, a doação de somas, às vezes inacreditáveis, para suas igrejas, pode ser entendida através da lógica do investimento, fundamental na sociedade capitalista. Cada doação que se faz, e conforme o volume dela, mais próximo você estaria, não só de ter direito ao reino dos céus, mas de ter o auxílio de Deus na consecução de seus objetivos materiais aqui na terra.

Literalmente é como se essas igrejas estivessem vendendo lotes no paraíso, é um empreendimento imobiliário no céu. Da mesma forma que, no capitalismo, paga-se até para morrer, para ser enterrado - tem que se adquirir um terreno no cemitério, tem que se pagar uma empresa para se fazer o velório, podendo tudo ser feito a prazo e no cartão de crédito -, os empresários da religião (pois é isso que se tornam, grandes empresários, que adquirem cadeias de rádio e televisão, que investem fortunas em suas campanhas políticas, que passam a movimentar grandes somas de dinheiro, na maioria dos casos, em espécie, sem pagar tributos, o que favorece, inclusive, que algumas dessas igrejas sejam utilizadas para a lavagem de dinheiro de atividades ilícitas) vendem a salvação, vendem milagres, loteiam o além túmulo. As denominações religiosas e seus dirigentes amealham fortunas prometendo prosperidade para quem doa parte de seus ganhos e, não só, para aqueles que adquirem produtos nos verdadeiros supermercados de relíquias religiosas, que se tornaram muitas dessas igrejas (água do rio Jordão, pedaços da cruz do Senhor, areia benta de Israel, até caroço de feijão abençoado e destinado a cura do Covid-19). O curioso é que um dos motivos que levou a Reforma Protestante foi, justamente, a denúncia por parte de Lutero, da chamada venda das indulgências, por parte das autoridades católicas, que era o pagamento exigido dos fieis pelo perdão dos pecados, por qualquer ato de benção por parte dos membros da Igreja Católica.

O protestantismo, notadamente, o dogma da predestinação absoluta, se tornou uma poderosa justificativa para as desigualdades sociais, para as injustiças sociais. Ao colocar aquele que tinha sucesso financeiro como um predestinado, um escolhido pelo Senhor, reforçava o preconceito contra os mais pobres, aqueles que não conseguiam ascender socialmente, que viviam na miséria. Além da pobreza, passava a contar com o estigma de ser aquele que não tinha sido escolhido, que estava condenado ao inferno. Os sofrimentos e dores, a degradação física e moral, vividos aqui na terra, seriam consequências de não serem o povo escolhido (daí a verdadeira fixação que dadas denominações do campo evangélico têm em relação a Israel, aos judeus, ao povo escolhido, do qual eles seriam uma espécie de continuidade, a ponto de hoje saírem em defesa do genocídio que está sendo cometido em Gaza, em total contradição com o próprio cristianismo, já que Cristo veio romper com dogmas fundamentais do judaísmo, daí porque foi crucificado pelas autoridade religiosas dessa religião, Cristo não foi morto pelos romanos, o governador Pôncio Pilatos lavou as mãos e disse não ter visto nele nenhum crime, foram os sumos-sacerdotes judeus que o condenaram à morte).

Essa lógica do povo escolhido é, perigosamente, transferida para a esfera política, com os bolsonaristas se considerando uma espécie de povo eleito, que possui a verdade e que, em última instância, têm o direito de eliminar (enforcado em praça pública), aqueles considerados pecadores, filhos do diabo, decaídos, os comunistas, os de esquerda. Bolsonaro apareceu na boca de muito pretensos profetas como o enviado pelo Senhor, como um predestinado, que venceu a morte (na fakeada), que veio para salvar o povo de Cristo (que curiosamente fala mais do Velho do que do Novo Testamento) da ameaça ateia e comunista.

O pedido de CPI, encaminhado a Câmara de Vereadores de São Paulo, pelo ex-integrante do Movimento Brasil Livre (MBL), de extrema-direita, Rubinho Nunes, tentando criminalizar a atuação do padre Júlio Lancellotti, não é uma novidade, ela se inscreve numa longa trajetória de ataques, de ameaças, inclusive a vida, do sacerdote. Ele, já há muito tempo, é um dos alvos privilegiados dos ataques orquestrados pela extrema-direita, pelo bolsonarismo, nas redes sociais. E por que a atuação do padre Júlio Lancellotti incomoda tanto? Primeiro, porque sua atuação é a própria encarnação da verdadeira mensagem do Cristo, que não tem nenhuma relação com cobrança de dízimo, com sucesso material, com enriquecimento dentro e fora da vida pública. O padre Júlio vive entre os pobres, aqueles para quem Cristo veio pregar, não entre os ricos, entre os poderosos. Cristo foi vítima dos poderosos, não viveu entre eles e se recusou a ser um deles, mesmo tendo o que seriam poderes excepcionais que a condição de filho de Deus o conferia. Judas o traiu, justamente, por moedas de ouro e prata e por não entender porque ele não usava seus poderes para libertar o seu povo do domínio romano (e por isso o povo preferiu Barrabás, que estava preso por contestar o domínio romano, a Cristo).

A atuação do padre Júlio Lancellotti é um tapa na cara cotidiano daqueles que enriquecem às custas da exploração da fé, da carência afetiva e material dos mais pobres. Daqueles que fazem de suas igrejas verdadeiros impérios comerciais, explorando as crendices e a ingenuidade das pessoas.

Ao chamá-lo de cafetão da miséria, o vereador que o persegue, deixa explícito seu ódio aos pobres, seu desprezo às populações de rua que, conforme a velha teologia da predestinação, são os condenados pelo pecado, estão aí para purgar a falta original, são os não eleitos (e claro esse vereador quer ser um dos eleitos no pleito desse ano e pretendeu usar a CPI e o padre Júlio como vitrine eleitoral, para agradar suas bases de milionários que financiaram sua campanha, muitos ligados a especulação imobiliária, que veem os habitantes da Cracolândia como lixo, como restos que devem ser removidos, por estarem atrapalhando e desvalorizando seus negócios).

Padre Júlio, ao contrário de muitos religiosos, inclusive da própria Igreja Católica, não dá apenas esmolas, não faz apenas caridade, ele denuncia o sistema, a ordem social que joga aquela gente fora como se fossem rejeitos de seu funcionamento perverso. Aquelas mais de cinquenta mil pessoas que moram nas ruas de São Paulo, não estão lá porque querem, a maioria não são consumidores de drogas (um enorme problema social que requer políticas públicas), são famílias inteiras que são produto do funcionamento de um capitalismo predatório, brutal, que mastiga e cospe fora as pessoas, como se fossem bagulhos.

O padre Júlio Lancellotti incomoda porque pratica o verdadeiro cristianismo, aquele que convoca a que se ame o próximo, notadamente o mais necessitado, que se tenha empatia, justamente, com aquele que mais difere de você, que se dedique a vida a fazer o bem e não que se dedique a vida a fazer o mal para o próximo, a usar o outro como instrumento de sua busca de poder, que se veja o diferente como um inimigo que se quer eliminar. O padre Júlio Lancellotti é insuportável porque ele é a encarnação daquele Cristo que se enfureceu ao ver o templo de Jerusalém transformado em mercado, aquele Cristo que se encolerizou a ponto de brandir o chicote e expulsar os vendilhões do templo. Hoje, são os vendilhões em muitos templos, que brandem o chicote contra o padre Júlio Lancellotti. É a desforra dos vendilhões do templo contra o Cristo, ele é que está sendo expulso, todos os dias, dos espaços e vidas que se dizem e se propagandeiam como sendo cristãs, mas não passam de mercadores e de mercados, como aqueles que levaram Jesus à fúria.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.