O dia 7 de setembro de 2022 deveria ser dedicado às comemorações dos duzentos anos da independência do país em relação ao domínio português. Embora essa data esteja sujeita a controvérsias, como qualquer acontecimento histórico, já que a história é contada a partir do presente e das perspectivas e interesses de um dado tempo, lugar e condição social de quem a conta, mas sendo a data magna na versão oficial de nosso processo de emancipação política, a data que representa a hegemonia das elites proprietárias e brancas no processo de constituição da nova nação, esperava-se que uma série de eventos, organizados tanto pelas instituições de Estado, pelo governo federal, quanto pela sociedade civil, marcasse a data, contribuindo para a reafirmação da própria ideia de nacionalidade, para a circulação de um discurso dirigido ao congraçamento de todos os brasileiros e todas as brasileiras, independente da classe social, da origem étnico-racial, do gênero, do local de nascimento e origem, da idade, ficção fundamental para a legitimação e manutenção dessa comunidade imaginada que é a pátria.
Mas o que vimos foi muito distante disto, o que se presenciou mais uma vez afirmou a dificuldade de se constituir uma nação, republicana e democrática, como define a versão liberal do nacionalismo, nessas terras brasilis. Mais uma vez ficou patente que nossas elites sociais e políticas, com honrosas exceções, não são suficiente civilizadas, no sentido burguês do termo, a ponto de pelo menos articular seus interesses de classe através da ideia de nação. Nossas elites demonstraram mais uma vez que desprezam até mesmo os rituais mais básicos de legitimação e reafirmação da ideia de nacionalidade. Colonizadas até a medula, elas vivem numa espécie de extraterritorialidade, o Brasil nunca é seu lugar, elas apenas se servem dele, o explora e o depreda, de olho na bandeira de outros países. Continuam vivendo a nostalgia de um europeidade perdida, a vontade de ser norte-americanos, enquanto desprezam todos aqueles que encarnam o que seria o povo brasileiro: indígenas e afrodescendentes, nordestinos e nortistas.
Não podemos reduzir as cerimônias e discursos grotescos que assistimos no dia 7 de setembro a um mero sequestro da data pelo bolsonarismo e pelo presidente Jair Bolsonaro. É inegável que o presidente, mais uma vez, não esteve à altura do cargo que ocupa, que mais uma vez transformou uma data em que qualquer Estado aproveitaria para se legitimar e reforçar sua aceitação, numa data para encenar a divisão e a cisão social e política que caracteriza e vive o país. Mais uma vez Jair Bolsonaro foi a encarnação do lado mais selvagem das elites brasileiras, sua face mais desabrida, um verdadeiro strip-tease da ignorância, da precariedade intelectual e moral, da violência e autoritarismo de uma elite acostumada a reger o país através da força, da opressão e da discriminação e marginalização da maior parte da população. Se Bolsonaro fez um sete de setembro só para si, se se apropriou de uma data cívica e a transformou num evento de sua campanha a reeleição, se à tempos ele e os bolsonariatas sequestraram os símbolos nacionais, fizeram as cores nacionais ser as cores de uma facção, as elites brasileiras, muito bem representadas por aquele palanque apinhado de gente branca, pelo empresário verde e amarelo da Havan, sempre se adornaram da própria nação. As elites brasileiras fazem até mesmo dos cofres públicos, do orçamento público uma propriedade só sua, não importando que isso implique que o restante dos brasileiros vivam e morram na miséria e de fome, que não tenhamos educação e saúde de qualidade, que a cultura e a ciência sejam abandonadas no país.
Os duzentos anos da independência explicitou, como nunca, o verdadeiro apartheid social e racial que constitui a sociedade brasileira, o racismo e a misoginia estruturais que sustentam a iniqua ordem social que o bolsonarismo quer perpetuar, nem que para isso tenha que matar aqueles e aquelas que a denuncia e pretende transformá-la. A pesquisa eleitoral publicada pelo instituto Ipec, logo após os eventos traumáticos do dia da independência, indicia, claramente, que Bolsonaro não é apenas uma figura disfuncional, um erro cometido pelo establishment brasileiro. Numa pesquisa que entrevistou mais de vinte e cinco mil pessoas, nos vinte e sete estados da federação, com margem de erro de apenas 0,8 a 1,4%, Bolsonaro só perde para Lula entre as pessoas que ganham de zero a dois salários-mínimos, que são a esmagadora maioria do eleitorado, cerca de 54%, o que explica a dianteira do ex-presidente, notadamente no Nordeste, onde essa faixa de renda é majoritária. No entanto, Bolsonaro é o preferido de todas as faixas de renda acima de dois salários-mínimos e seus percentuais vai num crescendo conforme sobe a renda das pessoas. Ou seja, Bolsonaro é o candidato das classes médias e das elites brasileiras, que se sentem representadas por ele, que se veem nele e que esperam que ele seja reeleito para continuar realizando esse governo distópico e de destruição das próprias instituições democráticas no país, investindo na brutalização da vida social e do uso aberto da violência armada como forma de manutenção dos privilégios por parte de uma elite que se sente ameaçada com qualquer mudança civilizacional, com qualquer alteração na escandalosa desigualdade social e regional no país.
O último grande escândalo de corrupção envolvendo a família Bolsonaro, a compra de 107 imóveis, 51 deles em dinheiro vivo, mostra que para as classes médias e para as elites brasileiras o problema nunca foi verdadeiramente a corrupção (até porque elas a praticam cotidianamente, assim como praticam a sonegação de impostos e não querem pagar salários e direitos trabalhistas, sonhando com a volta da escravidão), o problema nunca foi o tríplex ou o pedalinho, o problema era filho da empregada doméstica frequentando a universidade, o negro se tornando médico e engenheiro, a filha do jardineiro se tornando doutora, era o aeroporto cheio de pobres, era os pobres comprando automóveis e enchendo as ruas, era os médicos cubanos trazendo outra forma de entender e praticar a medicina para o país. Para a parcela mais pobre da população, para essa parte da nação, o presidente não teve uma palavra no dia da pátria, ela permaneceu excluída do palanque, das comemorações (até mesmo as plateias eram majoritariamente brancas e de classe média) e também do discurso do presidente, que preferiu falar de sua pretensa virilidade imbrochável, de sua esposa princesa e prometer exterminar os seus adversários, o que significa, se levarmos em conta as pesquisas eleitorais, exterminar 45% da população do país. Essas são as elites brasileiras, elas sempre não se preocuparam que grande parte do país morra prematuramente por desnutrição, por doenças perfeitamente curáveis, pela violência policial e aquela perpetrada pelo crime organizado. Uma elite capaz de ovacionar e chamar de mito quem faz apologia da tortura, quem homenageia torturadores e milicianos, uma elite capaz de rir diante de alguém que pesa quilombolas em arrobas, que sugere que todas as mulheres querem dormir com ele ou dar o furo.
O dia 7 de setembro foi a festa da ignomínia, uma vergonha internacional, que começou com o pedido de empréstimo do coração de um príncipe, para não ser utilizado para nada, sendo obscurecido pela genitália do presidente e que continuou com a dupla humilhação do presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, ignorado no palanque, tendo que ladear o periquito da República e depois deixado falando sozinho no Parlamento brasileiro, que se reuniu para comemorar data cívica mais importante do país, a qual o presidente não compareceu, preferindo ficar a conversar com os seguidores da seita no cercadinho. Mas, se Bolsonaro pode parecer uma excrescência para alguns, eu considero que ele é apenas a face mais desabrida de nossas elites, que, como os números das pesquisas eleitorais estão mostrando, não se envergonham de serem representadas por ele. No dia 07 de setembro as ruas das cidades brasileiras se encheram de carrões com bandeiras brasileiras, as janelas de edifícios e casas de classe média alta, da burguesia brasileira, exibiam o símbolo nacional sequestrado e transformado em símbolo de uma facção política e, com ela, de dadas classes sociais, mostrando que para essa gente o Brasil é só deles, não há lugar no país para as gentinhas da periferia, para aqueles jovens negros que do ônibus, no Rio de Janeiro, vaiaram e hostilizaram a motociata bolsonarista, essa exibição à la Mussoline de riqueza e de violência simbólica de classe. Fazendo o seu papel de garantidoras da dominação de classe, e de braço armado do bolsonarismo, a polícia tratou de prender os jovens e logo cuidou-se de tentar associá-los ao tráfico de drogas e acusá-los de porte de armas.
A divisão que vemos no país e que o dia da pátria serviu para espetacularizar, não é uma mera divisão eleitoral, não se trata de um mero embate entre partidários de duas candidaturas, é a divisão de classes, é a luta de classes em sua face mais truculenta, com a tentativa, inclusive, de cooptar os de baixo com toda sorte de expedientes, como o derrame de recursos públicos, ameaças de violência, chantagens feitas em empresas, igrejas e até mesmo no interior das famílias. Se setores da grande mídia, depois de fazer de tudo para levar Bolsonaro ao poder, hoje se envergonham e se arrependem, como ocorre com setores das próprias elites brasileiras, embora minoritárias, o fazem porque ele desvenda, de forma perigosa e inadequada, os mecanismos de dominação, como a violência e a opressão, ao fazer em praça publica não apenas o strip-tease de sua intimidade de macho inseguro, machista e homofóbico, mas da própria violência e truculência da dominação de classes no Brasil. Enquanto uma rainha colonialista morre e um rei sem vocação sobe ao trono, aqui o rei está nu e com ele toda a iniquidade da ordem social da qual fazemos parte, que ele encarna tão bem, mesmo que não tenha a menor competência nem para isso. Esse desastroso sete de setembro pode ter contribuído para que tenhamos nos olhado no espelho como nação, e a imagem que vimos é tão monstruosa quanto as estranhas da sociedade em que vivemos.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.