Em recente mesa-redonda de que participei, o filósofo, escritor, dramaturgo e professor Pablo Capistrano afirmava que, sendo menino nascido e crescido na cidade do Natal, nunca vivera ou partilhara do imaginário dominante acerca do Nordeste. Num debate cujo tema era a possibilidade da construção de outros imaginários para essa região, através da produção cinematográfica, evento promovido pela produtora Casa da Praia Filmes, que recentemente estreou, no festival de cinema de Ouro Preto, o curta-metragem “A Edição do Nordeste”, apoiado em grande parte do material fílmico que utilizei em meu livro “A invenção do Nordeste e outras artes”, ficou claro que outros Nordestes existem, na própria realidade, que o Nordeste é uma região bastante diversa e o grande problema é a visibilidade do regional que esse imaginário estereotipado cria, a ponto de obliterar outros olhares sobre a região, impedindo até mesmo que se veja o que de diverso existe concretamente nesse espaço.
Em sua fala Pablo Capistrano se referia a sua própria produção literária, feita a partir de suas vivências na cidade do Natal, literatura que dificilmente pode ser categorizada de regional e que não tem nenhuma ligação com o imaginário recorrentemente presente no chamado romance regionalista nordestino. O escritor potiguar se dedica a gêneros literários não identificados como regionais, como a literatura do fantástico, que materializou em obras como “Pequenas Catástrofes” (2005) e “É preciso ter sorte quando se está em guerra” (2011). Sua obra literária amalgama experiências de qualquer jovem que cresceu numa capital do país, durante os anos setenta do século passado, como a cultura pop, a ficção científica, o psicodelismo, a história em quadrinhos, o cinema, o rock, aliadas à sua formação no campo da filosofia, área em que fez graduação, e letras, área em que fez seu doutorado.
Essa prevalência da presença de uma experiência cosmopolita e urbana em seus textos, tão distante do imaginário rural ligado ao Nordeste, aparece, por exemplo, no livro publicado em 2017, “A grande pancada”, em que, através de crônicas, aborda a história do jazz. Tendo feito parte, nos anos 90, do grupo Sótão 277, que se dedicava a realização de trabalhos e discussões no campo do teatro, da literatura e da poesia, Pablo iniciou sua carreira literária em 1999, lançando o livro de poemas “Domingos do Mundo”.
No seu livro “É preciso ter sorte quando se está em guerra”, por exemplo, mistura elementos como experiências cósmicas, acontecimentos sobrenaturais e reflexões filosóficas. Ambientado na cidade do Natal e em municípios vizinhos, o livro é composto por três contos sem ligação aparente entre si, a não ser o fato de que são protagonizados por personagens masculinas, de idades diferentes, vivendo o impacto de um tempo presente, sombrio e angustiante. Nele aparecem temas universais, como amor, sofrimento, loucura, morte, deixando claro que poderia ser um livro escrito em outros tantos locais. Na palestra que proferiu, quando da mesa-redonda, Pablo fez uma espécie de arqueologia da produção cultural da cidade do Natal, aquela produção que nem sempre é visibilizada e considerada canônica, pois se deu à sombra e apesar desse imaginário regional, representado na cidade por um dos maiores intelectuais brasileiros do século passado: Luís da Câmara Cascudo.
Enquanto há todo um esforço para se colocar Cascudo como o representante pioneiro do modernismo na cidade e no estado do Rio Grande do Norte, pouco se fala do poeta Jorge Fernandes, nascido na capital, em 1887 e que já em 1927 publicava seu “Livro de poemas” com versos modernistas. O crítico e poeta Moacir Cyrne considera Jorge Fernandes um dos responsáveis pela manifestação pioneira na cidade do Natal de outros movimentos de vanguarda, como a poesia concreta e o poema processo.
Pablo Capistrano lembrou que o poema processo, foi um movimento literário que surgiu simultaneamente no Rio de Janeiro e em Natal, no ano de 1966, com artistas como o próprio Moacir Cyrne e Dailor Varela, que também será um pioneiro na criação do chamado poema-objeto, onde se radicaliza a proposta da chamada poesia vocovisual (que se utiliza de palavras e imagens) do movimento concretista. Em plena ditadura militar, vivendo numa das cidades mais militarizadas do país, por ser uma área estratégica, esses poetas se utilizaram dos Correios para enviarem telegramas e bilhetes poéticos, que faziam duras críticas ao regime. Mas, não é apenas na literatura e na poesia que a cidade do Natal é palco de produções artísticas e intelectuais que veiculam outro imaginário e que constituem, na prática, outros Nordestes possíveis.
No campo da música a cidade também possui toda uma tradição na formação de bandas e de cantores e compositores informados pelas sonoridades mais diversificadas. Sendo uma cidade que sempre foi aberta para o mundo, sendo o porto mais próximo da Europa, tendo sido campo de pouso das primeiras aventuras áreas de travessia do Oceano Atlântico, com hidroaviões pousando no rio Potengi, às margens do qual nasceu a cidade, ainda no início do século XX, Natal sempre contou com uma juventude antenada ao que se passa no restante do mundo, notadamente na Europa e Estados Unidos.
Natal produziu artistas como Roberta Sá e Juliana Linhares cujo trabalho musical transcende qualquer aprisionamento regionalista, com a primeira sendo hoje uma cantora que faz mais sucesso no exterior que no Brasil, dada a presença da marca da bossa nova em suas canções. O curioso é que na recente edição do Prêmio da Música Brasileira, que teve a cerimônia de premiação no último dia 31 de maio, na categoria de música regional, estivesse indicado o projeto musical que reuniu dois músicos potiguares e natalenses nomeado de Sample Hate, na categoria melhor dupla. Provenientes da geração de músicos independentes da cidade do Natal, que desde o ano 2000, dão origem a várias bandas, projetos e experimentações, Dante Augusto e Artur Porpino, que somados já fizeram parte de pelo menos duas dezenas de bandas, misturam sonoridades orgânicas e eletrônicas em composições cantadas em língua inglesa, que surgiram de uma temporada que os músicos passaram em meio a natureza, serras e cachoeiras da Chapada Diamantina, na Bahia.
É muito curioso que composições intituladas “Same Old Situation”, “Wake Alive”, “Spiral Dynamics”, músicas que são uma espécie de releitura do triphop feito por bandas como Massive Attack e Portishead, sampleando sonoridades de peles de instrumentos de percussão, de pratos eletrônicos, de vozes de cantores de bandas antigas siderizadas por vozes robóticas, possam ser categorizadas como música regional.
Parece que o Nordeste e tudo que é nele produzido estão condenados a figurar nesse rótulo de regional, que os hierarquiza e os coloca numa espécie de prateleira de menor importância em relação ao que seria nacional ou erudito.
Nessa categoria ainda foram atirados a banda Olodum e o Quinteto Violado, que nada têm em comum, em qualquer aspecto que analisemos, a não ser o fato de serem agrupamentos surgidos em estados do Nordeste. Assim como aconteceu em 2015, Alceu Valença foi premiado como o melhor intérprete de música regional, o que não faz jus a sonoridade e aos temas de suas canções. Alceu é um artista que articula em suas canções sonoridades locais com sonoridades universais, nomeá-lo de um cantor regional é reduzir o alcance de sua obra, é dar a ela uma classificação completamente equivocada. Que o álbum gravado ao vivo, pela cantora Elba Ramalho, no palco do Maior São João do Mundo, em Campina Grande, tenha ganho o prêmio de melhor lançamento de música regional ainda é aceitável, mesmo sabendo que a cantora paraibana também está longe de gravar e interpretar apenas as chamadas músicas regionais. Parece que o regional, nessas premiações, se tornou uma espécie de categoria-valise onde se atira tudo que não cabe nas gavetinhas classificatórias e toda produção de artistas considerados da periferia da nação ou do chamado interior.
Mas porque a cidade do Natal é um dos outros Nordestes existentes e possíveis? A capital potiguar foi palco de um acontecimento que impactou definitivamente sua própria identidade e o imaginário que a define: a presença de cerca de 30 mil soldados americanos para se instalarem na base aérea construída no que hoje é o município vizinho de Parnamirim. Transformada no chamado trampolim da vitória, a vida da cidade será profundamente impactada pela presença da cultura norte-americana, que continuará sendo acompanhada pelas novas gerações que nascem na cidade, através do cinema hollywoodiano, dos discos e da cultura do rádio, das revistas e jornais locais, que publicam, inclusive, a produção artística das vanguardas artísticas da cidade.
Em Natal viveram e produziram, durante toda vida, duas grandes expressões da pintura e da literatura modernistas: Newton Navarro e Dorian Gray Caldas. Natal é uma cidade muito pouco identificada com o imaginário regionalista nordestino, foi isso que me fascinou desde que a conheci e por isso nela resolvi viver. A presença constante de turistas internacionais, notadamente após os anos setenta, e o número crescente de residentes estrangeiros (cerca de 40 mil pessoas) mantém a cidade, notadamente em sua vida noturna, boêmia e cultural bastante atualizada quanto as novidades artísticas, intelectuais e culturais internacionais.
A própria Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde Pablo se formou e o Instituto Federal de Educação Tecnológica, onde é professor de filosofia, à medida que se expandiu e trouxe para a cidade professores e estudantes de várias partes do país e do mundo, sendo eles plateias privilegiadas da produção artística local e também partícipes de sua produção, fez do imaginário regional nordestino algo bastante exótico para essa cidade que, desde o início do século XX, quando ganhou uma Cidade Nova, dois bairros planejados conforme os ditames da engenharia moderna, sempre quis ser cosmopolita e moderna, embora governada e dominada por elites retrógradas e conservadoras.
A cidade vizinha de Parnamirim também é sede do centro de lançamento de foguetes da Barreira do Inferno, o que confere a cidade ares futuristas e modernos. Não é mera coincidência que essa cidade produziu o Grupo Carmin de teatro, que faz espetáculos totalmente desligados da estética do chamado teatro regional ou teatro nordestino, que fez enorme sucesso nacional criticando esse imaginário em seu espetáculo “A invenção do Nordeste”. É nessa cidade que surgiu a Casa da Praia Filmes que vem produzindo uma série de películas de curta-metragem como: Sideral, Fendas, Big Bang, que também fogem desse imaginário estereotipado e clichê sobre a região. Tenho certeza que o caso de Natal não é único na região, muito outros Nordeste possíveis e existentes estão aí para quem quiser ver e trazer para suas obras artísticas, literárias, acadêmicas, estão disponíveis para serem visibilizadas pela mídia regional e nacional.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.