Desde o resultado das eleições, ainda no primeiro turno, ouvimos repetidamente a ideia de que existem dois Brasis. As ilustrações de matérias jornalísticas, seja na mídia imprensa, seja na mídia audiovisual, com um mapa do país dividido em áreas azuis e vermelhas, produzem semioticamente a impressão de que o Brasil estaria praticamente dividido ao meio, do ponto de vista espacial e regional, com o Brasil vermelho sendo composto majoritariamente por estados pertencentes as regiões Norte e Nordeste, com a exceção do estado de Minas Gerais e o Brasil azul sendo composto pelas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste e por alguns estados da região Norte.
Essa impressão visual saiu reforçada pela votação do segundo turno, quando a diferença entre os dois candidatos foi de apenas 1.8 pontos percentuais dos votos válidos, com muitos se atendo apenas aos números redondos, o que dá uma eleição em que um candidato alcançou 50% dos votos e o outro 49% dos votos.
Mais uma vez, no segundo turno, o Nordeste foi a região em que o candidato vencedor, Luís Inácio Lula da Silva, alcançou o seu maior percentual de votos, conseguindo uma média superior aos sessenta por cento de votos válidos em todos os estados nordestinos. Ele conseguiu a proeza de aumentar a sua votação, na região, entre o primeiro e o segundo turnos, mesmo com as tentativas descaradas de compra de voto dos mais pobres, das chantagens empresariais e patronais, do sumiço do transporte público em algumas capitais, patrocinada pelos empresários do setor e da operação padrão realizada nas rodovias, no dia das eleições, pela Polícia Rodoviária Federal, que visou dificultar e impedir os eleitores nordestinos de votar.
No entanto, essa semiótica dos dois Brasis, essa tese de que existiriam dois países regional e espacialmente distintos não se sustenta. Eu considero que essa semiótica e esse enunciado produzem um falseamento da realidade e contribuem para uma leitura equivocada dos resultados eleitorais. Eles contribuem, de forma negativa, para o acirramento de discursos regionalistas e chauvinistas, de teses separatistas, de uma visão distorcida da verdadeira divisão que marcou esse pleito, que foi a divisão entre pessoas pertencentes a diferentes classes sociais, embora não possamos absolutizar e generalizar nenhuma destas divisões. Essa semiótica e esse enunciado dos dois Brasis só servem para reforçar slogans chauvinistas e regionalistas como: “orgulho de ser nordestino” ou “o Sul é o meu país”.
Nesse artigo vou me debruçar sobre o caso do Nordeste visando demonstrar que é uma falácia essa região homogênea, toda pintada de vermelho, essa Cuba do Sul, segundo a denominação dada pelos bolsonaristas. Assim como não se sustenta um Sudeste quase todo pintado de azul, quando sabemos que dessa região vieram milhões de votos para o candidato petista e que eles não vieram apenas do estado de Minas Gerais.
Assim como a maioria esmagadora no Nordeste foi fundamental para a vitória de Lula, a redução da diferença entre sua votação e a dada a Bolsonaro, no Sudeste, foi fundamental para a vitória. Essa semiótica e esse enunciado dos dois Brasil não fazem jus aos votos de cerca de mais de trinta por cento dos moradores dos estados do Sul, que heroicamente resistiram a onda bolsonarista e sufragaram o nome do candidato vencedor. Sem seus votos ele também não teria sido eleito.
Mesmo tendo perdido no Centro-Oeste com uma diferença maior do que no primeiro turno, dado o inédito maior comparecimento dos eleitores do que no turno anterior, Lula ultrapassou a casa dos quarenta por cento dos votos na região dominada pelo agronegócio que, como vemos nas manifestações tresloucadas depois da eleição, é uma das bases de sustentação mais intransigente do bolsonarismo. Lula saiu vencedor na maior metrópole brasileira, a cidade de São Paulo, por uma maioria de 486.437 votos e na maior parte dos municípios da região metropolitana daquela cidade, no entanto, perdeu, mais uma vez, na capital de Alagoas, Maceió, por uma diferença de 58.662 votos.
Portanto, não existem regiões vermelhas e regiões azuis, não existem estados vermelhos e estados azuis. Essas eleições foram marcadas por uma clara divisão dos votos por classes sociais, com a maioria dos eleitores de Lula vinda daqueles que ganham até dois salários-mínimos e a maioria dos eleitores de Bolsonaro vinda daqueles que ganham acima disso, com destaque para as classes médias e para os ricos.
Essa divisão feita por espaços e regiões visa mascarar que esse pleito explicitou a luta de classes no país, o que os meios de comunicação tendem a fazer de conta que não existe. Sem dúvida que essas eleições também foram marcadas pela divisão entre os que defendem a democracia e os que defendem projetos autoritários e ditatoriais ou entre aqueles que defendem dados valores civilizacionais e aqueles que dão pouca importância ou conscientemente combatem esses valores. Mas essas questões foram responsáveis por mobilizar setores das classes médias e até setores das elites empresariais, tendo pouca repercussão no interior das camadas populares. Essas votaram, em grande maioria, no candidato do PT, apoiadas na memória da melhoria de vida que tiveram durante os seus governos anteriores, na recusa a piora das condições de vida que experimentaram nos quatro anos do governo Bolsonaro: desemprego em alta, a disparada da inflação dos alimentos, corte drástico nas políticas sociais.
Podemos dizer que, se levássemos em conta apenas essas eleições, poderíamos dizer que o eleitorado brasileiro demonstrou uma alta consciência política de seus interesses e na defesa de seus direitos, pois os ricos votaram naquele que governou para eles, para beneficiá-los, com o desmantelamento da legislação e da fiscalização trabalhista; com o não reajuste do salário-mínimo, aumentado suas taxas de lucro; com a licença para realizar atividades empresariais ilícitas na Amazônia; com a disparada do dólar, beneficiando os exportadores do agronegócio; a alta dos preços e a inflação que tornaram os ricos ainda mais ricos, sugando a renda do restante da sociedade; com as privatizações de empresas públicas a preço de banana; com o pagamento de dividendos astronômicos para os acionistas da Petrobras às custas de um política de preços dos combustíveis que levou a uma transferência de renda da sociedade para esses setores privilegiados; a alta das taxas de juros, beneficiando o setor financeiro; o liberou geral para a compra de armas, que alimentou não só os “empresários” do crime organizado, como a parte mais truculenta do agronegócio, que se armou contra os “sem-terra”, os indígenas, os quilombolas.
As manifestações pós-eleições explicitam bem qual foi a divisão principal que segmentou o eleitorado: enquanto os protestos bolsonaristas conta com churrasco da mais suculenta picanha, a maioria daqueles que votaram em Lula foram, os que nos últimos anos, roeram apenas ossos e carcaças. Enquanto uma minoria branca, transportada em seus carros de luxo, vão fazer convescotes na beira das estradas e portas de quartéis, deixando claro que não são trabalhadores, não têm muito o que fazer, a maioria dos eleitores de Lula tentam furar os bloqueios para chegarem aos seus empregos, sob pena de serem mais alguns a aumentarem a cifra de desempregados.
Enquanto as manifestações golpistas contam com o financiamento de empresários do agronegócio e do setor de logística, atraindo gente que vive na realidade paralela, na bolha criada pela posse de sofisticados celulares, a maioria dos eleitores de Lula tiveram que cair na real, logo na segunda-feira, voltando para seus ônibus e trens superlotados e precários, para seu trampo, onde lhe esperava um patrão derrotado e mal-humorado, para batalhar pelo seu salário sem reajuste real há quatro anos, ainda tendo que agradecer por não estar entre aqueles que saíram das ruas e praças, onde sobrevivem, para as seções eleitorais, quando e se ainda possuíam títulos de eleitor.
Não é verdade que o Nordeste é todo vermelho, apenas aqui é muito maior o número de pobres do que em outras regiões, como a região Sul, onde prevalecem as classes médias e os ricos e Bolsonaro alcançou vitórias astronômicas. Nas capitais e grandes cidades da região Nordeste, onde se concentram os ricos e as classes médias da região, Bolsonaro teve votações expressivas.
Lula ganhou por grande maioria nos municípios menores e nas cidades do interior, embora mesmo nesse recorte haja exceções localizadas, como a cidade de Morrinhos, no Ceará, onde Bolsonaro alcançou 47,87% dos votos (6.594 sufrágios). Em João Pessoa, por exemplo, a diferença entre Lula e Bolsonaro foi de apenas 925 votos, num eleitorado votante de 457.577 eleitores. Em Parnamirim, a segunda maior cidade do Rio Grande do Norte, Bolsonaro foi o vencedor, obtendo 60.389 votos, contra 52.136 dados a Lula.
Para entendermos esse resultado basta sabermos que no maior bairro da cidade, Nova Parnamirim, e em outras partes do município, existe uma grande concentração de condomínios fechados de prédios e casas, habitados pela típica classe média e pelos ricos da região, que se acham brancos, mesmo sendo pardos e afro-descendentes, que se acham distintos e superiores, que são antipetistas porque são anti-pobre, anti-Bolsa Família, porque possuem uma visão burguesa e empresarial do mundo, mesmo quando só têm dívidas a pagar. Em cidades onde o número de pessoas de classe média e rica é expressivo, como Natal e Campina Grande, Bolsonaro alcançou 47,4% e 48,17% dos votos válidos, respectivamente.
E, diga-se de passagem, que a vitória de Lula nessas duas cidades é um feito, pois em eleições anteriores elas deram a vitória aos candidatos do PSDB e, em 2018, a Bolsonaro. Em Alagoas, além da vitória na capital, Bolsonaro atingiu 47,26% dos votos na importante cidade de Arapiraca, uma cidade de forte presença dos setores médios. Ele venceu na cidade pernambucana de Santa Cruz do Capibaribe, com 52.12% dos votos, cidade que é o epicentro da região do estado voltada para a fabricação e venda de confecções, caracterizada pela prevalência de pequenas empresas e empresas familiares (eu imagino a pressão dos patrões para que seus empregados votassem contra seus próprios interesses).
Portanto, não faz sentido esse discurso ufanista e chauvinista, esse regionalismo exacerbado, que atribui ao Nordeste e aos nordestinos como um todo a vitória de Lula e das esquerdas. É verdade que os pobres do Nordeste, mas também os de todas as regiões país, notadamente aqueles que não foram manipulados pela pauta moral e pelo trabalho eleitoreiro de muitas igrejas evangélicas, mostraram enorme altivez e dignidade, não se deixando corromper e comprar pelo volume de recursos que foram jogados nessa campanha, que resistiram a ameaças e chantagens patronais e de líderes religiosos, com destaque para as mulheres que resistiram ao assédio de pais, maridos e filhos bolsonaristas, e foram, muitas vezes em silêncio, dar o voto a Lula. É um engodo esse Brasil dividido entre o cordão azul e o cordão encarnado, modelo pastoril ou corrida de argolinha.
O Brasil está profundamente divido entre ricos, classes médias e pobres, sendo a desigualdade social um dos nossos maiores problemas, e ela se explicitou como nunca nessas eleições, com as classes médias, como sempre, sonhando em serem ricas, querendo mimetizar os ricos e apavoradas com a possibilidade de ascensão dos pobres, que eles venham retirar seus lugares de privilégios, por isso, a maioria deles, mesmo sabendo muito bem quem é Bolsonaro, foram em massa as urnas tentar impedir a vitória do político no Brasil que mais representa e tem identidade com as camadas populares, com os trabalhadores. No domingo, 30 de outubro, quem é patrão ou tem cabeça de patrão, em sua maioria, foram de Bolsonaro, quem é pobre e trabalhador, quem sabe bem o que é ter um patrão foram, em sua maioria, de Lula. Essa foi a divisão que atravessou transversalmente todas as regiões do país.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.