Consórcio Nordeste: a força aglutinadora do regionalismo nordestino

Recentemente o presidente Jair Bolsonaro, em sua live semanal, atacou o Consórcio Nordeste, acusando o secretário geral, Carlos Gabas, de ter gastado 48 bilhões de reais para adquirir 48 milhões de respiradores, que jamais teriam chegado. Não é a primeira vez que o presidente da República mostra seu desconforto e contrariedade com a existência dessa autarquia interestadual, que surgiu, justamente, em setembro de 2019, como uma resposta ao tratamento discriminatório e preconceituoso que o governo federal vinha dando as demandas dos governos da região Nordeste. 

Logo no início de seu governo, Bolsonaro, numa reunião ministerial, havia recomendado que não fossem repassados recursos para o que chamou de “governadores paraíbas”, usando o termo pejorativo utilizado no Rio de Janeiro para se referir aos nordestinos. Tendo sido derrotado por grande diferença na região e sendo nela que se encontra muitos dos governadores identificados com a esquerda (quatro governadores do PT, um do PSB e um do PCdoB), Bolsonaro mantém, desde o início de sua gestão, uma relação tensa com as administrações estaduais da região.

O Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável do Nordeste foi criado a partir do que prevê a Lei n.11.107, de 2005, e o Decreto n. 6.017, de 2007, que regulamentaram a criação de consórcios públicos. Tendo como slogan “O Brasil que cresce unido”, o Consórcio Nordeste dá provas, mais uma vez, da força aglutinadora e mobilizadora do regionalismo nordestino. Ele mostra como o ataque ao conjunto dos governos da região, a partir de preconceitos regionais e/ou ideológicos, teve o condão de mobilizar o centenário sentimento de regionalidade, que surgiu ainda no final do século XIX. 

No próprio texto que justifica a criação do consórcio, se fala na necessidade da articulação jurídica, política e econômica dos nove estados que compõem a região, para enfrentar preconceitos e discriminações no que tange ao aporte de recursos, a construção de obras, as previsões orçamentárias. 

Enquanto destacados políticos nordestinos dão sustentação política ao governo Bolsonaro, ao integrarem o chamado Centrão, ao ocuparem ministérios chaves, ao ocupar a presidência da Câmara dos Deputados, não dando prosseguimento aos pedidos de impeachment, o Consórcio Nordeste aparece como a outra face da relação entre o governo federal e a região.  

Enquanto o Brasil apareceria dividido politicamente, o Nordeste se apresentaria unido, como a região que mais teria crescido economicamente no século 21. 

As elites dessa área do país, desde o final do século XIX, que chegaram à conclusão de que, diante do declínio econômico e político, diante da perda de centralidade no país, a única forma de se fazerem ouvir no contexto nacional era se apresentando de forma articulada. Com a ascensão econômica e política de São Paulo, com o deslocamento do eixo de desenvolvimento do capitalismo brasileiro para o Centro-Sul, as chamadas elites do Norte viram que a única forma de continuarem tendo acesso a uma parte das finanças públicas eram agindo em conjunto. 

Já na Assembleia Constituinte de 1891, as bancadas do Norte atuaram em conjunto no sentido de que as secas fossem incluídas no capítulo da Constituição que tratava das calamidades públicas, que ficariam sob a responsabilidade da União. Tratava-se de evitar que, dada a ampla descentralização dos recursos e das competências e atribuições promovidas por uma Carta extremamente federalista, a responsabilidade pelo combate as secas ficassem com os estados, retirando o que já era, naquela altura, um dos principais motivos de transferência de recursos do governo central para as províncias. 

Em 1909, as bancadas do Norte, em troca do apoio a criação da política de valorização do café, conseguiram que fosse criada a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), que representou dar a essas elites um lugar institucional de fala e a criação de uma agência de produção de conhecimentos técnicos e científicos, que ajudavam a embasar e legitimar as demandas dessas elites regionais.

Para se oporem com maior sucesso as bancadas paulista e mineira no Congresso Nacional, em meados da década de dez, do século XX, os parlamentares dessa área se reuniram no chamado Bloco do Norte, que foi fundamental na reformulação do IOCS com a sua transformação em Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), em 1919, instituição que foi responsável pela delimitação inicial e divulgação do recorte espacial Nordeste, feito a partir  da área de realização de um programa de construção de obras contra as secas. 

A atuação em conjunto das elites políticas nordestinas sempre se verificou quando se tratava, sobretudo, de reivindicar, através do discurso da seca, investimentos por parte do Estado, a criação de instituições, como o Instituto do Açúcar e do Álcool, criado em 1933, o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), em 1945, o Banco do Nordeste (1952), instituições criadas em momentos políticos de transição, marcados pela incerteza política, ocasiões em que as elites nordestinas foram sempre hábeis em negociar seu apoio ao governo federal fragilizado, em troca do atendimento dessas suas demandas. 

Sendo estados frágeis do ponto de vista econômico, representando, ainda hoje, apenas 14,3% do PIB nacional, embora represente cerca de um quinto do território nacional (1,5 milhões de quilômetros quadrados) e abrigue uma população superior a 59 milhões de habitantes, desde cedo as elites desse espaço, muitas delas vindas de troncos familiares comuns, sendo formadas nas mesmas instituições de ensino, confluindo para os mesmos centros econômicos e de poder, para os mesmos lugares em busca de educação, se articularam numa atuação regional que foi proporcionada pelo surgimento da ideia de Nordeste e pelo partilhamento de uma memória social e de um imaginário comum. 

O Consórcio Nordeste vem, em grande medida, substituir o papel aglutinador de políticas regionais, de instância de planejamento, de instância de gestão, que fora pensado para a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), instituição que foi esvaziada e destruída nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso, não por mera coincidência, os governos que encarnou de forma mais desabrida a visão hegemonizante e centralista paulista.

Também não é mera coincidência que Celso Furtado, o economista paraibano, idealizador da SUDENE tenha sido eleito patrono do Consórcio, que agora confere, inclusive, uma comenda que leva o nome do primeiro Superintendente da SUDENE, visando condecorar aqueles que colaborarem com o que se chama de desenvolvimento sustentado da região. 

A própria estrutura organizacional do Consórcio é semelhante ao da SUDENE: a Assembleia Geral, que é a instância máxima de decisão do Consórcio, é composta pelos nove governadores dos estados nordestinos, tal como era composto o Conselho Deliberativo da SUDENE, que também era o órgão máximo na estrutura daquele órgão.
 

A pandemia representou um grande teste para a capacidade de coordenação e planejamento do Consórcio, além de por a prova um dos aspectos mais interessantes da existência dessa autarquia interestadual: a possibilidade de se fazer compras em conjunto, ampliando a capacidade de negociação de preços e contratos.

 
Esse ano de 2021 foi marcado pela criação das Câmaras Temáticas em várias áreas (educação, saúde, cultura, meio ambiente, gestão pública, arranjos públicos e privados, segurança pública, assistência social, turismo, farmacovigilância, ciência e fomento do conhecimento, saneamento), que buscam a realização de estudos e ações integradas, a adoção de políticas públicas concertadas regionalmente, ganhando em economia de escala e aproveitando os recursos humanos, tecnológicos e a capacidade instalada nos nove estados. 

Com sedes em Brasília e Salvador, fica claro que o Consórcio Nordeste além de um instrumento de planejamento, gestão e construção de políticas públicas regionais, é uma entidade com claras conotações políticas. 

É a presença da região em Brasília, em face do governo federal, do Congresso Nacional, de forma unida e coesa, dando maior peso as reivindicações e demandas aí apresentadas. Mas uma vez o regionalismo nordestino mostra o seu poder de aglutinação das elites políticas dessa área do país, atuação em conjunto que faz com que o Nordeste continue sendo muito relevante politicamente no país, mesmo naqueles momentos em que economicamente ficou muito para trás.
 
A pergunta a se fazer é por que tendo importância política as elites desse espaço mantiveram essa região e seu povo em situação de subdesenvolvimento, miséria e desigualdade? 

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.