Quando escrevi "A Invenção do Nordeste e outras artes", no início dos anos noventa, não conhecia a canção de Belchior, "Conheço o meu lugar", gravada por ele no final dos anos setenta. Se conhecesse, é evidente que teria escolhido a estrofe que diz: "Nordeste é uma ficção, Nordeste nunca houve", para epígrafe da minha tese de doutorado, que se transformaria em livro.
Teria prestado uma justa homenagem à genialidade do poeta cearense que intuiu, duas décadas antes, aquilo que minha pesquisa de historiador iria confirmar: o Nordeste é uma ficção, pois fruto da elaboração humana, da construção de sentidos e significados, muito estereotipados, para um dado recorte regional, região que é também uma fabricação humana no campo da cultura. Como realidade natural ou como uma coisa já dada, como um espaço que existiu desde sempre, Nordeste nunca houve.
Eis que por diversos caminhos, eu e Belchior, que nos desencontramos nos anos noventa, não paramos de nos encontrar em distintas produções culturais dos últimos tempos. Fico muito feliz e lisonjeado que artistas de diferentes áreas venham se inspirando em minha obra para questionarem o imaginário em torno da região Nordeste e em torno do ser nordestino. E mais feliz me torno ao me ver entrelaçado com homenagens mais do que merecidas ao desditado músico, cantor e artista múltiplo sobralense.
Tal como faço em "A Invenção do Nordeste", Belchior, em "Conheço o meu lugar", contesta o lugar estereotipado, o lugar de "baiano" ou de "paraíba", que sua origem nordestina o reservava nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Ao afirmar que não pertencia ao lugar dos esquecidos, à nação dos condenados, ao sertão dos ofendidos, o poeta cearense afirmava a sua consciência de pertencer a uma classe média, a um setor privilegiado da sociedade nordestina, ou seja, ele afirmava que conhecia seu lugar de classe, embora estivesse sendo alojado num lugar de subalternidade só por ser nordestino.
Nordeste ficção, enunciado saído da música de Belchior, nomeia o trabalho musical, recém-lançado nas plataformas digitais, pela cantora, compositora e atriz potiguar Juliana Linhares, que traz na capa trecho de "A Invenção do Nordeste" como se fosse uma carta assinada por mim. A música que dá título ao trabalho, "Nordeste ficção", de autoria da própria Juliana, traz em um de seus refrãos as afirmações de que o Nordeste é uma ficção científica, o Nordeste é uma invenção política, o Nordeste é uma criação artística, fazendo eco a teses centrais de meu livro e aos versos da canção de Belchior.
Produzido por Elísio Freitas, com direção artística de Marcos Preto, o álbum se compõe de onze faixas, com duas parcerias de Juliana com Chico César e uma com Zeca Baleiro, a regravação de "Tareco e Mariola", de Petrúcio Amorim, e uma música inédita de Tom Zé.
Além da belíssima voz de Juliana, dos arranjos inovadores para as sonoridades ditas nordestinas, sem deixar de estar nelas referenciadas, podemos dizer que o álbum de Juliana nos coloca musicalmente na vivência de entrelugares, que é a experiência da maioria dos nordestinos, fadados a migração, a desterritorialização, a transplantação, como muito bem figura a bela imagem, presente na canção título, de um cacto sertanejo plantado na soleira da porta de um prédio de cidade grande, mal cuidado, esquecido, quase sem raízes, mas, por isso mesmo, podendo se imaginar ramificando, se espalhando por outros espaços.
O documentário "Oxente, Bixiga!", dirigido por Daniel Fagundes e Fernanda Vargas, produzido pela "Caramuja: pesquisa, memória e audiovisual", traz logo na abertura, como síntese do que a obra se propõe a fazer, os versos de Belchior: "Não há pranto que apague dos meus olhos o clarão, nem metrópole onde não veja o luar, o luar do sertão".
Durante pouco mais de uma hora, somos levados a um encontro com as múltiplas camadas de memórias, vivências e saudades que configuram a história do bairro do Bixiga, em São Paulo, com ênfase nas memórias dos nordestinos.
O documentário é uma verdadeira etnografia poética do povo brasileiro, de seus trânsitos, de suas viagens, de suas dolorosas experiências de viver entre lugares, mas também da potência criativa, das belezas estéticas e existenciais que nascem dos encontros entre vidas e realidades tão diversas.
Gente como a mãe da cineasta, que saiu do Ceará para fugir da violência paterna e foi se casar em São Paulo, com um exilado boliviano fugindo da violência política. Gente como Belchior que, vivendo no porão de um prédio ainda em construção, no bairro do Bixiga, pode ter aí criado muitas das pérolas musicais que comporiam seu LP Alucinação.
Quando em entrevista para o documentário, falei da saudade como experiência fundamental da maioria dos brasileiros, dos nordestinos, dos cearenses - como os da cidade de Mombaça, que fazem o trânsito permanente entre o Bixiga e o interior do Ceará -, por sermos um povo em sua maioria esquecido, condenado, ofendido, desterrado, não imaginava que mais uma vez estaria me encontrando com Belchior, estaríamos nos encontrando na saudade, na ausência dessa presença cada vez mais incontornável da cultura brasileira, a presença do gênio que enunciou, por vez primeira, que Nordeste é ficção, com ele que morreu esquecido e abandonado numa fria cidade do Sul do país.
Esse é um país que adoece, enlouquece e mata suas maiores inteligências! Resultado: a ignorância no poder.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.