Dengo,
não sei quem escreve esta carta, se sou eu ou você. Permita que façamos isso juntos. Finalmente chegou o tempo em que o tempo é o mesmo para nós. Não o desperdicemos separados. Quase sempre foi assim, e sabemos da dor.
Nunca passou pela cabeça uma loucura daquelas. Foi brincando que a gente se desuniu, lembra? Gostávamos tanto um do outro… Havia uma faísca bonita ali, labareda alta e acesa. Mas um de nós dois falou que estava tudo terminado. O outro acreditou e ficou magoado. Decidimos o rompimento. Terminamos mesmo. Será?
Costuro essas linhas enquanto recordo os caminhões percorrendo as estradas, o pensamento em ti. Você já estava com outra pessoa, mas eu sabia que estava em mim. A gente começou cedo a se conectar. Percebemos logo a infinitude.
Nascemos no mesmo ano, os cartórios documentando: Sônia Maria Félix da Silva e Laércio Alves de Souza. E morávamos pertinho. Um em Jati, no Ceará; outro em São José do Belmonte, Pernambuco. Fronteira quase nada, carinho ocupando tudo. Aos 15 anos, uma festa e o primeiro encontro. Viramos canção e oração. Firmamos aliança.
Mas aí, aquilo: a tal brincadeira. Peripécia do mal. Viramos distância. Um foi para São Paulo – as condições de vida em 1970 diziam que o melhor destino era lá. A outra rumou para Fortaleza com a família, também em busca de novos ares. Oficialmente longes, Dengo. Eu quase não aguentei. Aposto que desabamos juntos.
Beijos nas paredes, toalhas e lençóis. Pranto se esparramando no peito. Quem estava na quentura do chão de Alencar casou. 32 anos assim. Mas prosseguiu com a ideia de retorno. Sonhava. Queria estar perto daquele bem. Quem seguiu para a capital paulista encontrou trabalho dirigindo caminhão, namorou mulheres, acreditou ter abraçado a felicidade. Era coisa só de alegria: passageira. Bom mesmo seria estar nos braços da alma preferida.
Houve apenas uma vez em que o reencontro não tardou. Um ano depois da separação, quem estava em São Paulo escutou Dominguinhos no rádio. “Que falta eu sinto de um bem/ Que falta me faz um xodó”. Saudade não resistiu. Tinha que voltar logo pro paraíso. O ônibus da Real Caririense cruzando os semáforos, as linhas brancas e amarelas na pista. Jati era destino de novo. E a gente se amou de novo. Para se despedir em seguida. A carestia era grande e havia necessidade de trabalho. Da música, ficou só aquela partezinha: “Eu levo a vida assim tão só”.
Agora já é outro trecho, e a gente cantarola alto: “Um xodó pra mim, do meu jeito assim/ Que alegre o meu viver”. É que a gente está junto de novo, Dengo. Cinquenta anos depois. Marido de Sônia falecendo, coração esquentou mais uma vez. Aquele calor da juventude aos 66. Ela voltou para Jati. E Laércio, quem diria, também retornou, habitando o Ceará. Nada mais pra fazer em São Paulo. Desta vez, o município de Jardim, localidade de Fazenda Nova. Não tardou para que nos achássemos. Quem disse que houve perda?
Leve busca na internet, conversa vai, pergunta vem, bingo! Era manhã.
“Laércio?”
“Quem é você?”
“Não tá me conhecendo? É Sônia, do Jati”.
Arrepio. Iluminação.
“Pois vamos conversar”.
E dias depois, paixão incendiando o peito: “Vamos casar?”.
Branco e lilás as vestes da cerimônia, tons que dizem do aconchego. Enfermidade nenhuma dele venceu, nem a leve timidez dela. Apenas os “sins”, lembra? A gente estava tão feliz. Rejuvenescidos. Aquele jeito de galã camuflado pelas rugas. O corpo feminino tão definido em novas curvas. Nosso canto favorito o quarto, onde o desejo deflagra sussurros, risadas, xodós. Permanecemos faiscando.
E eu ainda não sei quem escreve esta carta. Mas tudo o que pensei e não te falei está aqui. Para quando me perguntar se estou te reconhecendo, eu diga que ainda não. Nunca vou querer. Prefiro ir te descobrindo no próximo meio século – de preferência, sem peripécias do mal. Brincar apenas de não se desjuntar. Eu só quero um amor.
Sem sentir mais saudade,
Nós
Esta é a história de amor de Laércio Alves de Souza e Sônia Maria Félix da Silva . Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor.
* Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor