Minha bisavó memorizou as cartas do amor da vida dela e recitou todas antes de morrer com Alzheimer

A cearense que precisou queimar as cartas do namorado da adolescência devido ao casamento com outro homem, mas nunca esqueceu a plenitude de um talvez

Nem tudo será conhecido um dia. Certas coisas moram em outro tempo, enclausuradas, sem jamais acontecer. Tornam-se memória – matéria-prima de um caderninho que Ivana Coelho carrega consigo. É adulta, tem 46 anos, reconhecida e compromissada. Mas volta e meia retorna àqueles papéis, como se buscasse a si mesma ali. Uma detetive. Uma espiã.

O caderno estampa o que ficou de físico da bisavó, Úrsula Azevedo. São cartas recitadas por ela no anoitecer da vida. Velhinha, mais de 90, não chegou a ser diagnosticada com Alzheimer, mas os sinais eram evidentes. Sobretudo um que transformou tudo: perda de memória recente, mas a recordação concreta de um fato ocorrido em meados dos anos 1900.

À época, a família da jovem Úrsula – natural de Itapebussu, distrito do município cearense de Maranguape – precisou mudar para o Pará em busca de melhores condições de sustento. Era o Ciclo da Borracha, cujo auge se deu entre 1880 e 1910. Entre tanto trabalho e novas paisagens, o horizonte mais bonito para ela foi Isaac, a quem devotou carinhos e palavras.

Os dois começaram a trocar cartas já ali, no despontar da paixão. Verbos muito delicados, tingidos da frescura de um amor primeiro. Veja só: na correspondência inicial escrita por ele, há esse trecho: “A maior desventura para mim será vossa ausência, deixando eternizada em meu coração uma eterna e nunca esquecida lembrança”.

Era setembro de 1904. No caderno de Ivana, porém, está cravada mais uma data: 29 de janeiro de 1980. Isso porque dona Úrsula, à medida que ia relembrando as cartas, fazia isso em voz alta e era ouvida pela filha, Tereza Azevedo Coelho, avó de Ivana. Atenta aos gestos da matriarca, Tereza notou ser aquilo o conteúdo-chave de algo guardado na memória por quase 80 anos.

Assim, registrou o dia em que escutou o relato, não sem antes entender o que verdadeiramente aconteceu. Isaac não era o nome do pai; então, o que aconteceu com aquele outro homem? Quem era ele, onde estaria agora? O que houve entre os dois para além das cartas? E, principalmente: que lugar ele ocupava no coração de dona Úrsula?

Era o amor da vida dela, compreendeu. Quem nunca esqueceu porque sempre haveria de evocar. Se antes silenciosamente – talvez nas madrugadas insones pensando no que eles poderiam ter sido, no quanto poderiam ter avançado diante de tudo tão sublime – naquele instante para quem quiser ouvir. Era o amor da vida dela, mas daqueles para não acontecer.

Porque, quando Úrsula retornou para o Ceará após a temporada da família no Pará, não deu mais para sustentar a distância, a falta. Isaac continuava a enviar correspondências, e ela também. Os caminhos de cada um, porém, rumaram para outras estradas. Uniram-se a outros pares, outro homem e outra mulher. Deixaram aquele bem-querer adormecido.

Úrsula, inclusive, já tendo conhecido outro rapaz e prometida em casamento, resolveu queimar todas as cartas de Isaac. Não poderia guardar aquilo, não era lícito a uma esposa de respeito. Mas, de tanto ler o bem-querer declarado, sedimentou-o no peito. Eram labaredas consumindo as linhas, ela chorando sem pretender aquele destino, mas uma nova vida à espreita, firme.

Tornou-se mãe de dois e criou mais três filhos do esposo viúvo. Foi pioneira. Trabalhou formalmente nos Correios em um período que, para as mulheres, tudo era ainda mais difícil. Escrevia muito bem, gostava das coisas simples e importantes. Era querida no lugar onde morava, e fez por merecer cada conquista. Partiu em silêncio, deixando rastro de saudade.

Saudade e reverência. A família, ao saber da grande história de vida dela, do grande amor, admirou ainda mais aquela travessia de pormenores. Ivana Coelho, com quem começamos esta história, tratou de homenageá-la: tatuou uma flor no corpo. Com ela, outras quatro – uma para a avó, uma para a mãe, Rosa Úrsula, uma para ela mesma e outra para a filha, Valentina.

Gerações de mulheres-oceano, imersas na profundidade de desejos, vontades e segredos. E se seguem tão vivas é devido a trajetórias feito essa: o que importa, importa e pronto. Nem que seja na penumbra da vida, naquela zona calada, no não-dizer que grita. Isso é grande também: o que a gente não comunica tem tanta força quanto o contrário. A vida está nos cantos.

Para Úrsula, a existência seguiu por muitos anos, mas aquelas semanas em que passou com Isaac devem ter ocupado a mente todos os dias. O olhar dele, o cheiro, a presença. Então, quando faleceu após lembrar de cada palavra do amado, talvez tenha voltado para aquele lugar onde tudo foi pleno e limpo. O Pará, em alguma primavera. Em infinito verão.

Quero crer que estão juntos agora. Ivana também. Afinal, Isaac assinava nas cartas, “teu e sempre teu”. Chamava-a de “neném”. Não era coisa passageira. Estes versos dele, entoados na voz cansada e segura de Úrsula, também não: “Ai, deixa-me chorar aqui sozinho/ Qual beija-flor que chora o alvo ninho/ Que o vendaval roubou/ Deixai que no abismo da amargura/ Sumiu-me o manto azul de mil venturas/ Que a minha alma sonhou”.

 

*Esta é a história de amor de Úrsula Brasileiro de Azevedo e Isaac Lopes Freire contada pela bisneta, Ivana Coelho. Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor

 

Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor