Dique acordava cedo. Gostava de mar. Trocou leite materno por peixe e não disfarçava temperamento. Era expressivo. Ganhava a família com o olhar. Tinha medo de quase nada. Salvou amigos de perrengues, sabia ser companheiro. Acumulava manias. Só tomava água se fosse mineral. Não suportava ficar longe. Preferia o calor.
Dique era um cachorro. Ele morreu faz oito anos. Mas todo dia renasce quando Gilberto Holanda da Silva sai no táxi para trabalhar. O automóvel percorre Fortaleza feito um símbolo. O cãozinho é reconhecido de longe pelos colegas de praça. Para os desconhecidos, torna-se assunto, motivo para que desviem o olhar. Foi uma decisão de Gilberto.
Para matar a saudade, espalhou fotos de Dique pelo carro. Está em vários cantinhos, nas reentrâncias todas. Três dos registros, em ímã, adornam a placa da Spin branca ano 2021. Dique sorri de um lado e do outro, entre os números e as letras. No espaço interno da caranga, mostra os dentes também. Parece manso nas fotografias. Foi um animal feliz.
Chegou até Gilberto tinha três meses de vida. Uma amiga ofereceu o cachorro, queria doá-lo a alguém. Na primeira visita, coisa de outras vidas, pareciam se conhecer. O novo dono aproveitou a fluidez do contato, colocou-o logo nos braços e levou para casa. Prometeu à esposa chegar com um bebê. “Tá doido?”, assustou-se. Era loucura. A melhor delas.
Porque as coisas ficaram de cabeça para baixo a partir dali. Literalmente até. Dique se mostrou um rapaz enérgico, pouco dado à inércia. Mistura de Poodle com Maltês, exibia aparência fofa, mas decidida. Gilberto nunca esquece da paixão avassaladora em pouco tempo. Ele, a esposa e o filho, todos entregues ao humano de quatro patas.
Era isso que suspeitavam: Dique só podia ser gente sob o emaranhado de pelos. Quem mais salvaria uma menininha de morrer afogada num almoço de família? Quem sentia a energia do lugar e tentava transformar o humor para melhor? Quem defenderia outro alguém de um assalto na beira da praia quando todos os outros alguéns, gente feito eu e você, só olhavam?
Foi em uma manhã de sábado. Gilberto e Dique desceram para a Praia do Futuro como sempre faziam. Começaram a caminhar. Em determinado momento, o cãozinho tomou distância e Gilberto não percebeu que um homem, anteriormente deitado na areia, agora estava atrás dele, apontando faca. Pedia pulseira, relógio e anel. E quase conseguiu.
“Dique, Dique!”, chamou Gilberto. Não tardou, o amigo, correu veloz. Saltou no ladrão e não largou fácil. Concentrou toda a força, pareceu até crescer em tamanho, para não deixar que agissem de má forma. Em dado momento, Gilberto não sabia se o sangue era dele próprio, se tinha recebido facada, ou era só Dique provando fidelidade, a ânsia da defesa.
Aquilo ficou marcado, como tantos outros detalhes ficaram marcados. Dique crescia em esperteza e graça. Todo dia uma descoberta diferente, naquele silêncio que sussurra e diz “eu te amo, tô aqui, gosto de ti”. Foi assim durante 14 anos. Nesse adolescer, reservou a primeira e única surpresa negativa para o dono. Rápido feito bala, mais forte que bombas.
Infartou. O desespero foi tão grande na casa do bairro Demócrito Rocha que o filho de Gilberto, Roberto Jorge, fez respiração boca a boca com Dique. Ele não vinha, não voltava. Tentou de novo, e ele voltou. Foi apenas o tempo de encarar os três companheiros de lar e escorrer lágrima. O fio d’água correndo pelo focinho era existência em despedida. Não voltaria mais.
“Deu um grito e morreu. Foi muito triste. Quando isso aconteceu, peguei ele e fiquei deitado com ele na cama, agarrado. Meu filho dizendo, ‘pai, está morto’; e eu, do outro lado, ‘deixa ele aqui’”. Ficaram ali embalados, emudecidos. Houve velório e sepultamento. E até hoje, quando Gilberto recorda, vem choro.
Saudade que ameniza um tanto quando está ao lado de Caíque e de Cauê, dois Malteses que chegaram após a partida do antigo escudeiro. Gilberto não teve como recusar, foram praticamente presentes. Os irmãos devolvem luz ao domicílio, vocacionado para a alegria. Sobem no sofá, na cama e na rede, mimam os donos enquanto eles os mimam. Reinam.
É como Gilberto ama de novo. Volta a acreditar no sentimento. Sabe, porém, que isso nunca vai passar. Quando vê um cachorro machucado na rua, leva para o médico. Quando os clientes precisam estar acompanhados dos mascotes, não titubeia: sobe todo mundo no táxi, problema nenhum. Pecado é lhes deixar de molho.
Parece que volta a ser criança, quando, tão pequeno, já adorava estar entre cães. Só não imaginaria que um deles mudaria tudo a ponto de continuar existindo em meio à morte. Agora, quando andar por Fortaleza, repare: tem um cachorro sorrindo de um lado e de outro numa placa automobilística. Um táxi tão humano e tão canino. Codinome: amor.
Esta é a história de amor de Gilberto Holanda e o cãozinho Dique. Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor