Ninguém sabe o que acontecerá a cinco minutos. Ninguém sabe o que acontecerá a três. A gente até se apega às cartas e aos búzios, conversa com santo e providencia bola de cristal. Não adianta. Tomar decisões é a melhor forma de prever o futuro, diz uma poeta.
Então, quando decidiu levantar naquela manhã de março de 2014, Emerson Damasceno de certa forma previu o futuro. Talvez não fosse tão claro como ele gostaria, nem escrito em linhas tranquilas. Mas previu porque agiu. A pista ainda estava molhada da madrugada, o sol mal despontava no horizonte, quando ele e mais sete homens saíram de bicicleta.
Triatletas. Robustos e dispostos. Iriam de Fortaleza a Pindoretama, 50 quilômetros cada trecho. Treino “longão”. Começaram bem, energia de começo de dia, pouco suor no rosto. Avançavam rapidamente, sobretudo Emerson. Estava em plena forma, num dos melhores treinos da vida. Um menino. E, de repente, ali pela CE-040, na altura do Eusébio, aconteceu.
Um carro bateu no atleta. Não foi coisa pequena. Deu para sentir o baque. Caiu de cabeça, corpo todo ao solo, apagão instantâneo. Não viu as luzes da emergência chegando nem o espanto no rosto dos colegas. Não checou o estado da bicicleta, o tamanho do prejuízo. Não viu nada, não sentiu nada.
Ficou paraplégico. Movimentar ou sentir as pernas feito antes, nunca mais. Era a ruína. Como alguém tão devotado à ação poderia não mais caminhar, correr, pedalar, nadar? Que espécie de futuro era aquele que o destino reservou, essa peça feia e de mau gosto? As perguntas ficaram no limbo, em algum lugar do desespero. Mas apenas por lá mesmo. Não vingaram.
Emerson tratou logo de espanar a mente, deixar a imobilidade de lado. Coisa difícil, claro – ele estava se preparando para o Iron Man daquele ano, evento grande, sonho antigo. Impossível, jamais. A tentativa deu certo porque era desejo interno não estagnar, como sempre foi. Permanecer em movimento, apesar de. Haveria de se recompor.
A saída foi encarar a nova realidade e tentar dar um jeito nisso. Adaptar casa, carro, começar fisioterapia. Também assumir para si a saudade do mar e, por que não, de tantas pessoas no mesmo cenário. Emerson lembrou das braçadas intermitentes, sob o sol da aurora. Da onda indo e vindo, banhando a alma. Será que poderia, ainda que paraplégico, voltar ao oceano?
“Apesar da deficiência, continuei nadando muito bem. Inclusive, é minha melhor modalidade, a paranatação. Voltar ao mar após dois anos do atropelamento foi essencial porque eu ainda estava numa fase de aceitação, de ficar preocupado em como seria a minha vida depois da deficiência acidental… O mar trouxe isso: a lembrança de que eu continuava sendo uma pessoa, um atleta, alguém que ama a praia, a água”.
Não pense que foi tão simples assim. Foi um passo a passo. Primeiro o desejo, depois as providências e, enfim, a conquista. Na conta dos encaminhamentos, Emerson, advogado, ingressou na Comissão de Defesa da Pessoa com Deficiência, da OAB-CE, e resolveu se dedicar à causa da inclusão. Nascia o projeto Praia Acessível.
Neste ano, a iniciativa completa 10 mil atendimentos em Fortaleza. De um lado, gente que não esmoreceu diante da lida diária e recusou abandonar o prazer marinho; do outro, funcionários devotados ao bem humano e com toda a aparelhagem propícia para fazer feliz e dar dignidade – as cadeiras anfíbias, a esteira, o treinamento salva-vidas.
“Foi emocionante a primeira sensação de estar no mar de novo – e é sempre emocionante – porque a gente começa a perceber que, embora estejamos numa sociedade muito capacitista, conseguimos mudar a vida das pessoas”, diz Emerson de um lado. “É diferente, especial, um mergulho de renovação e de esperança”, partilha Nancy Segadilha do outro.
Conheci a Nancy por meio do Emerson. Ela é do Amazonas e, em 2005, também sofreu um acidente que a deixou tetraplégica. Advogada e ativista feito o amigo, hoje luta pelos direitos das pessoas com deficiência e se emociona ao recordar que foi o mar de Fortaleza que a acolheu no momento em que imaginou não ter como retornar às ondas.
“Era meu aniversário. Falei com o Emerson sobre minha vontade de entrar no mar. Mas parecia uma coisa: marcamos de ir no dia 17, choveu; no dia 18, do mesmo jeito; apenas no dia 19, meu aniversário, conseguimos. Foi um presente para mim, e toda a equipe super atenciosa do Praia Acessível entrou. Me passaram total segurança. Fiquei um tempo na cadeira e depois até saí dela, fiquei ali, de boa, no mar. Foi incrível”.
Agora, com esse projeto já tão bem-sucedido, Emerson deseja que outros ganhem mais coro. Há um chamado Bike sem Barreiras. Mesma lógica: proporcionar à população com deficiência a chance de levar vento no rosto outra vez sob duas rodas. Improvável? Não aqui.
“O atropelamento foi um grande divisor de águas para mim porque reforçou minha confiança. A partir dele, tive certeza de que a vida continua”.
Ele tira o carro do estacionamento cedinho, primeiras estrias solares no firmamento. Sai do Guararapes para a Praia de Iracema. Há uma canção tocando no rádio, penduricalhos balançando no retrovisor. Tem 51 anos e, se um dia dissessem que o futuro seria esse, duvidaria. Tomar decisões é a melhor forma de prever o futuro. Emerson sabe.
*Esta é a história de amor de Emerson Damasceno pelas pessoas com deficiência. Envie a sua também para verso@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor.
Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor