Há um poema de Patativa do Assaré (1909 - 2002) em que ele confessou como o luto parecia lhe roubar as palavras, logo dele, artesão hábil para quem o verbo fazia as vezes do barro. "Eu vou contá uma históra/ Que eu não sei como comece,/ Pruquê meu coração chora,/ A dô do meu peito cresce,/ Omenta o meu sofrimento/ E fico uvindo o lamento/ De minha arma dilurida,/ Pois é bem triste a sentença/ De quem perdeu na isistença/ O que mais amou na vida", assim o poeta inicia "A morte de Naná".
O sentimento expresso pelo poema traduz o silêncio que invadiu, neste domingo (18), um número incontável de amigos, alunos, discípulos e admiradores de Gilmar de Carvalho.
A cada telefonema e mensagem trocada por essa imensa rede de órfãos que ele deixou, repetiu-se o mesmo testemunho: a tristeza que nos fazia não saber o que dizer, o choro que afogava as palavras antes de elas serem ditas. Mas ficar sem palavras, como o poeta, talvez seja o tributo apropriado. O primeiro, pelo menos.
Quem conviveu com Gilmar conheceu bem seus silêncios. Quando ouvia alguém, frequentemente se demorava um pouco nos pensamentos antes de falar. Franzia o cenho, massageava a barba. Cuidava das palavras, das ideias, para então fazer observações breves e precisas, como a letra miúda com que autografava suas obras e escrevia os bilhetes que deixava junto aos livros e textos emprestados aos seus alunos.
O exercício da introspecção era não só um traço de sua personalidade, como uma manifestação de sua generosidade. Gilmar ocupava um lugar insubstituível na vida cultural e intelectual do Ceará, mas não se deixava seduzir pela própria importância.
Atendia quem o procurava, ouvia com atenção quem começava então a descobrir o vasto território que ele palmilhava há décadas. Dividia e, assim, multiplicava. Como poucos, dedicou-se a formar pesquisadores e a fazer despertar a consciência para o valor da cultura e da comunicação.
Não é possível falar da cultura, das artes e do jornalismo do último meio século no Estado sem se tomar nota de sua presença. Foi uma referência para os publicitários e jornalistas, que ajudou a formar na Universidade Federal do Ceará e com seu exemplo; homem de teatro, ficcionista de vanguarda; um autor-viajante, que esquadrinhou as riquezas materiais e imateriais de todo o imenso continente das culturas das tradições populares; e uma voz crítica e insubmissa diante das violências alimentadas pela ganância e pela ignorância.
Professor foi o título que se usou com mais frequência para referir-se a ele. Professor Gilmar de Carvalho. O próprio gostava de assim ser chamado, por orgulho da profissão e por direito, dado ter sido um mestre em tantas frentes, na universidade, nas redações, nas estradas do Ceará e na vida. Quem foi seu aluno nunca deixou de sê-lo. Outros tantos o são sem saberem: suas lições seguem reverberando em seus órfãos-aprendizes.
Outros silêncios se seguirão. Gilmar gostaria que fossem os da leitura e da releitura de seus livros, aos quais dedicou a vida. Serão, também, os da repetição de seu gesto, de pensar antes de falar, já que os encontros com ele agora se darão, sempre e para sempre, na memória.
Cada silêncio será a véspera da palavra. Gilmar plantou tantas que, certamente, ainda muito ouviremos sua voz, escrita, falada ou vivida, em tantos quantos tiverem sido seus aprendizes - e repito: todos o somos.
Obrigado, professor. Até a próxima leitura.