A cena foi insólita.
Xuxa participou de uma live da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, para falar de direito dos animais. Numa digressão, sugeriu que presos fossem usados em testes de laboratório. O cancelamento bateu à porta: a rainha dos baixinhos foi acusada de repetir ideias nazistas. Quem imaginaria juntar estes dois universos?
Ao ver o vídeo, a primeira reação foi um misto de náusea, pelo que foi dito, e incredulidade, diante da absurda frequência com que o Nazismo tem voltado às manchetes no país. Na sequência, uma inquietação se transformou em questão. Afinal, por que estamos dando ouvidos à Xuxa?
No domingo (28), outro episódio pareceu complementar o caso Xuxa. O secretário da Saúde da Bahia, Fábio Vilas-Boas, comentou numa postagem da cantora Ivete Sangalo em homenagem a seus fãs. “@ivetesangalo você deveria ser mais envolvida em questões sociais. O Brasil está no caminho do colapso na saúde. O que você fez para ajudar a evitar?”, questionou.
Ivete, claro, não ficou calada. Saiu com um “me respeite!". O secretário apagou a postagem e, como Xuxa, se desculpou. Mais uma indagação: por que um secretário de Saúde, no meio de uma pandemia, se preocupa com o que Ivete Sangalo faz ou deixa de fazer?
Quando se esquece o propósito
Não é hoje que se busca ouvir gente famosa sobre toda sorte de temas. Existe mesmo uma necessidade de ouvir suas opiniões, pouco importa a perícia da figura neste ou naquele assunto. O que se exige é que, quando se distanciar de sua zona de conforto, o figurão mostre que é “gente como a gente”.
O que antes era da ordem dos programas de variedades ou das publicações de fofoca, imperialisticamente, se expandiu e conquistou novos territórios. E, assim, a arena do debate público vai trocando gente de ideias por gente que tem nome. "O que Anitta tem a dizer sobre Bolsonaro?"; "o que Neymar pensa sobre o racismo?".
Há questões sérias que podem ganhar visibilidade graças ao alcance dos canais de comunicação dessas celebridades. Mas ao se insistir que se manifestem, tenham ou não o que dizer, reflitam ou não sobre o que está em debate, corre-se o risco de colher algo irrelevante ou, ainda, de se decepcionar. E a cultura do cancelamento registra, com frequência, tais decepções.
Quando os parlamentares do Rio ou o secretário de estado baiano convocaram famosas para mergulhar em pautas complexas, eles não estavam interessados em seu capital intelectual. O que importa é a projeção delas em redes sociais, não a toa, palco das duas polêmicas. São interlocutoras que, ali, valem pela capacidade de atrair olhares, e quem está do lado espera se beneficiar desta abundância de atenção.
As redes sociais são vistas como bilhetes de loteria da fama, com o diferencial de, nesse jogo, existir formas de se aumentar suas chances de êxito. Nelas, a celebridade tornou-se algo quantificável, mensurada em cliques, engajamento e outros valores. E, de olho nessa fama, instituições e pessoas chegam a se esquecer de seus objetivos primeiros.
O debate da Alerj, por exemplo, foi engolido por essa lógica. Do ponto de vista de visibilidade, não poderia ter se saído melhor, ao ser anabolizado por uma polêmica viral. Mas o tema que buscava debater ganhou secundário no noticiário.
Investir no sucesso digital exige que se aceite seus riscos. Não há método seguro ou controlável que garanta o sucesso da empreitada. E, assim, perde-se numa lógica, por vezes, indistinguível daquela do “fale mal, mas fale de mim”. Sucesso de público não quer dizer, necessariamente, que a mensagem foi entendida.
Inteligência e entusiasmo
Debater ideias exige responsabilidade com elas. A vedete deve ser a inteligência e o conhecimento sobre o tema, não apenas tópico, porque nenhuma questão séria é atomizada (não se reflete sobre o direito dos animais, sem entender do direito das pessoas). O entusiasmo deve ser reservado a quem alia reflexões complexas e exposição clara das próprias ideias.
É ingenuidade imaginar que um debate assim terá tanta atenção se for protagonizado por gente com um número modesto de seguidores. Contudo, mais uma vez, deve-se reafirmar os objetivos e compromissos de qualquer discussão que se proponha à sociedade.
Há formas de o alcance ser maior? Sim, para tal, exige um pacto, informal, porém ético, capaz de agregar instituições, a classe política, intelectuais, figuras públicas e, claro, do próprio público. As celebridades também podem contribuir para tais discussões, sem canibalizá-las.
Precisamos viralizar a inteligência.