A paixão pelos livros encontra cada vez mais inimigos

O amor pelos volumes impressos é motor de excentricidades, mas também de histórias inspiradoras contra as ameaças do presente

Livros inspiram um sem número de paixões e manias. Umas são tão inocentes quanto cheirar os novos, como um enólogo que antecipa o prazer em papel e tinta. Outras, mais ambíguas, levam a seguir desconhecidos, para descobrir que volume carregam. E há as abomináveis, caso de se tomar um livro emprestado e não devolvê-lo.

Colecionar livros é, certamente, a mais disseminada e crônica dessas paixões. Bibliofilia é o nome civilizado, respeitável e socialmente aceito desta compulsão de ter perto uma coleção privada, uma biblioteca particular construída ao sabor dos interesses e caprichos de seu proprietário.

Por vezes, as paixões incendeiam a razão e as inibições. Bibliomania é a forma viciosa deste amor aos livros. Não é reconhecida clinicamente, mas pode ser tomada como o sintoma de um transtorno obsessivo-compulsivo.

O crime espreita aqueles consumidos por esse furor. Caso do norte-americano Stephen Blumberg, preso e condenado há 30 anos, por roubar 23 mil títulos raros, de universidades e museus dos EUA e do Canadá, pelo simples prazer de tê-los consigo.

A ficção sonhou em expressões ainda mais sombrias desse amor. A estreia literária de Gustave Flaubert (1821 - 1880), então com 15 anos, chamou-se exatamente "Bibliomania". O conto de toques policiais e satíricos leva seu protagonista ao assassinato para desfrutar do livro que o obcecava.

Felizmente, há também paixões inspiradoras, como a de Aby Warburg (1866 - 1929), algo entre um conto de fadas e uma história de amor. Historiador da arte, primogênito de uma família de banqueiros judeus de Hamburgo, aos 13 anos, ele abdicou do direito e da missão de, um dia, tocar o negócio do pai. O beneficiário seria o irmão mais novo, Max, que aceitou a condição imposta por Aby: comprar-lhe, até o fim da vida, todo e qualquer livro que o futuro historiador desejasse para seus estudos.

Graças ao dinheiro da família, Aby Warburg teve o quis: chegou a possuir 45 mil livros. Sua biblioteca foi transformada num centro de estudos; e a instituição e o acervo, transferidos da Alemanha para a Inglaterra, nos anos 1940, fugindo ao ódio nazista aos judeus e à cultura. Hoje, o acervo do Instituto Warburg é sete vezes maior.

   

A ambição de Aby Warburg pode parecer insólita, caprichosa e exagerada, mas não incompressível. É o sonho fundador de todo amor pelos livros, com a vantagem de ter sido dotado de mais imaginação e de condições materiais para concretizá-lo. Sem pais milionários, os amantes dos livros buscam o mesmo, com os pés no chão e a cabeça entre as nuvens.

Não falta quem insista em manter, para si, uma biblioteca, que cresce título a título e, logo, ao ritmo de pequenas pilhas. Ocupa-se uma prateleira e então uma estande, ou melhor, já são duas delas, três, um cômodo.

Logo, você adquire mais do que o orçamento permite e o ritmo de leitura e a capacidade de encher as estantes se desencontram: a biblioteca vence.

Contudo, parece haver hoje uma conspiração contra os livros.

Outrora reverenciados, tornam-se dia a dia mais escassos no noticiário. Mínguam as livrarias independentes e as redes de lojas do gênero ameaçam tombar como gigantes, esmagando quem estiver embaixo. Nos voos de bagagens pagas, tornaram-se inviáveis à extravagância de trazer muitos deles de viagens de livrarias e sebos de mundos tão distantes. Ou mesmo que o leitor se permita ao luxo da indecisão, e acomode, entre suas roupas, meia dúzia de volumes.

Fantasmas rondam o livro sem que seu amante se dê conta, enquanto procura descontos que harmonizem seu apetite e suas condições de, momentaneamente, saciá-lo. Ora são impostos, de uma eventual Reforma Tributária, que pode encarecê-los; ora é a privatização dos Correios, que se anuncia como particularmente danosa para os quixotescos editores independentes.

A conspiração inclui, ainda, a tendência de se morar em espaços cada vez menores. Habitações em forma da cápsula, projetadas por arquitetos que entendem e aceitam que os livros são prescindíveis, salvo dois ou três exemplares, imensos e de encadernações vistosas, para adornar estantes. Ou eu ou eles, vê-se confrontado o leitor. A escolha parece óbvia, mas o dilema é não outro senão o angustiado "ser ou não ser" de Shakespeare.

Uns livram-se da angústia, recorrendo ao prático e contemporâneo e-reader. Outros não conseguem abdicar dos prazeres do objeto que, desde Gutemberg, é perfeito.

Numa distopia, num futuro que talvez esteja à espreita uns poucos meses adiante, é possível imaginar homens e mulheres dormindo em corredores, acomodando-se na garagem, para que os livros tenham onde habitar.
Impensável para alguns, esse sono, a despeito do desconforto do corpo, terá a tranquilidade de quem honra sua paixão e protege o que ama. Há muitas formas de destruir os livros. O fogo, até então, parecia ser a mais terrível delas. Mas há também a chama fria desse mundo hostil ao livro. Contra ela, a insurgência exige o que é próprio das paixões: o calor da vida e um tanto desrazão.