Nesta quinta-feira, 24 de março, Portugal completa 17.500 dias em Democracia, um a mais do que o período da ditadura, que durou 17.499 dias. É um marco simbólico que deve ser comemorado.
O contador tem duas datas de referência. 28 de maio de 1926, início de um dos mais longos regimes autoritários vistos na Europa no século XX; e 25 de Abril de 1974, quando a Revolução dos Cravos abre a contagem dos dias da vida democrática de Portugal.
Ditadura em Portugal
Durante o Estado Novo, ou Salazarismo, o país tinha um governo conservador e nacionalista com o lema “Deus, Pátria e Família” (parece atual, não?). Foi uma época de pobreza, repressão, censura e gasto de dinheiro com o envio de tropas para controlar as colônias ainda mantidas na África. A ditadura acabou quando os Capitães de Abril, responsáveis pela revolução de 1974, apoiados pelo povo, tomaram o poder.
Hoje, vemos um cenário global em que extremistas ganham mais espaço, regimes autoritários tentam minar debates democráticos e em que movimentos incentivados por líderes políticos querem reescrever a História. Hoje, completamos exatamente um mês de uma guerra instaurada por uma autocracia contra um país independente. Por isso, hoje, devemos celebrar Portugal.
Importante salientar: o país não está imune ao contexto descrito acima. O novo parlamento, eleito em janeiro, tem como terceira maior força política um partido de extrema-direita que vem numa rota de crescimento exponencial desde que foi criado, em 2019.
Mas os valores da Revolução dos Cravos são firmes na Constituição, nos órgãos de soberania e, principalmente, na sociedade. Não há questionamento que avance em Portugal sobre a importância do 25 de Abril, assim mesmo, com artigo definido e letra maiúscula, porque a data é um símbolo. É o Dia da Liberdade, como se diz por aqui.
Ninguém leva pra frente qualquer dúvida sobre o período da ditadura e, todos os anos, o 25 de Abril, feriado nacional, é celebrado pelas ruas com desfiles que juntam milhares de pessoas e muitas atividades políticas, sociais, culturais (menos em 2020 e 2021, por causa da pandemia, em que os lugares de celebração foram as janelas de casa).
"Ajuste de contas"
Em 2019, com as comemorações dos 45 anos do 25 de Abril, tive a chance de entrevistar para uma reportagem a pesquisadora Filipa Raimundo, autora do livro “Ditadura e democracia, legados da memória”. Uma das análises que a socióloga propõe é a de que o “ajuste de contas” com os responsáveis por regimes autoritários e seus apoiadores ajuda a deslegitimar esses governos e tornar ainda mais clara a diferença entre o que é uma ditadura e o que é a Democracia.
Em Portugal, o que se passa é um processo de ajuste de contas imediato, que implica julgamentos dos membros da polícia política, afastamento do serviço público de pessoas que eram consideradas aliadas do regime. São retirados os direitos políticos também a uma série de pessoas que participaram do funcionamento do regime. É uma abordagem muito diferente daquela que se passou no Brasil”
Enquanto hoje Portugal chega aos 17.500 dias de Democracia com a certeza do que foram os 17.499 de ditadura, o Brasil tem um governo que revisita o passado aos olhos da impunidade das elites políticas ligadas ao golpe de 1964.
"Ninguém ignora o muito que ainda precisamos fazer para termos o país que desejamos e que merecemos. A liberdade e a Democracia são sempre obras inacabadas e nunca estão imunes às ameaças. É necessário agir contra o populismo, as desigualdades, a corrupção, o medo, o racismo, o ódio”, disse ontem o primeiro-ministro português, António Costa, durante o discurso que marcou a ultrapassagem dos dias de ditadura e o lançamento das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril (vai ter muita festa até 2024).
Se Portugal fosse um canteiro de obras, a placa da segurança do trabalho hoje diria “estamos há 17.500 dias sem acidentes”. A construção será eterna, por isso é importante celebrar cada marco simbólico que ajuda esse contador a não reiniciar.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.