Maria da Penha sobreviveu a duas tentativas de feminicídio antes de escrever o livro que se tornaria uma "carta de alforria" - como costuma dizer - para as mulheres brasileiras. Com "Sobrevivi… Posso contar" chamou a atenção do mundo e pressionou o país a criar uma das mais avançadas legislações para combater a violência doméstica. Dezoito anos depois de emprestar seu nome à lei e mergulhar numa luta para combater a violência contra a mulher, ela se vê obrigada a lutar contra o ódio.
Maria da Penha não tem o costume de acessar as redes sociais. Estranhou quando, há alguns anos, começou a receber vídeos e publicações enviadas pelos amigos com a suposta versão do seu agressor, já rejeitada duas vezes pela justiça por meio de suas condenações. Um documentário lançado na internet a empurrou recentemente para uma enxurrada de ameaças e virou combustível para a extrema direita e adeptos do movimento Red Pill.
A farmacêutica cearense viu-se imersa em ataques de ódio, que ganham força com a intensa onda de desinformação e fake news que se multiplicam na internet. Assim como na época em que a lei foi criada, há 18 anos, ela voltou a tomar cuidado com os locais que frequenta e a se proteger. Sentindo-se insegura, precisou valer-se do programa de proteção aos defensores dos direitos humanos no Ceará.
É neste contexto que tem também defendido outra bandeira: a de criminalizar a misoginia, que é a discriminação e a propagação do ódio contra mulheres. Dar uma resposta mais severa por meio de lei, como com o racismo e a homofobia. "Todas essas questões de ódio precisam ser criminalizadas porque é um absurdo que aconteçam", disse recentemente no podcast O Assunto, comandado pela jornalista Natuza Nery.
Maria da Penha tem clareza de que o caminho é longo para proteger as mulheres de tantas violências. Defende que a questão seja levada para as escolas, terreno fértil para combater a cultura do ódio.
No país que mata uma mulher a cada seis horas, ela acredita que o posto de saúde seria um importante equipamento para acolher vítimas de violência nas pequenas cidades, onde não há ainda uma rede bem estruturada. Para ela, é preciso fazer um trabalho também com os ex-agressores. Maria da Penha acredita que homens violentos podem, sim, mudar.
Neste ano em que a lei completa 18 anos, ela vê as tentativas de descredibilização de sua história como uma ameaça às conquistas alcançadas. Por isso, aos 79 anos, sabe que prestou uma contribuição importante, mas não tem a sensação de dever cumprido. Continua firme para lutar.
A missão de proteger mulheres da violência e do ódio foi construída desde aquela madrugada de maio de 1983, quando acordou com um tiro queimando suas costas. Ouviu o então marido contar para os vizinhos que havia sido um assalto enquanto buscava na vizinhança apoio e socorro. Desde então, foram meses entre hospitais do Ceará e do Distrito Federal.
Apesar dos inúmeros tratamentos médicos, Maria da Penha voltou para casa paraplégica. Viu-se solitária, com visitas cuidadosamente controladas na própria casa. Começou a desconfiar que o crime contra ela havia tido a autoria do então marido, mas a certeza só se concretizou meses depois, com os resultados das investigações policiais.
Amparada pelos movimentos de mulheres, a farmacêutica encampou a luta para responsabilizar seu agressor. Depois de duas décadas acompanhando e cobrando a justiça, viu o ex-marido ser condenado duas vezes e ficar preso por menos de dois anos. Nunca desistiu de buscar justiça para si e para tantas brasileiras como ela. Atacada pela extrema direita e pelos simpatizantes do movimento Red Pill, Maria da Penha segue comprometida com a luta para que a lei que leva o seu nome cumpra seu propósito: proteger as mulheres.