Territórios de sangue, segregações residenciais reais e simbólicas

A imagem de bairros e comunidades urbanas sedimenta-se como paisagens do medo pela cidade

Era noite e a área permanecia mal iluminada. A explicação estava nas poucas luzes fracas e amareladas dos raros postes. Na rua predominava a terra batida, e os quatro ou cinco paralelepípedos vistos, lembravam uma pavimentação decrépita. Exatamente na esquina, longe da calçada – até porque ela não existia – o sangue se espalhava em forma de poça.

O jovem corpo masculino jazia à vista dos olhares de homens, mulheres e muitas crianças. Logo, os refletores e os faróis das viaturas ampliaram temporariamente a iluminação local. Os repórteres chegaram e as crianças, ao redor do corpo já coberto, pulavam e acenavam para as câmeras. 

Esta descrição não foi retirada de livro policial, nem tampouco de filme ou série televisiva, pelo contrário, corresponde a fatos reais e reportados, quase diariamente, pela mídia local através dos muitos programas policiais nas grades dos canais de televisão. 

Em razão da repetição dos acontecimentos violentos contra a vida (assassinatos, latrocínios e chacinas) e da maneira como eles são exibidos pela mídia e interpretados pelos telespectadores, a imagem de bairros e comunidades urbanas sedimenta-se como paisagens do medo e territórios de sangue.

Há mais ou menos um ano, neste Diário, publicou-se a reportagem "Geografia do crime: áreas de Fortaleza com piores IDHs concentram maior número de homicídios em 2020". O texto acertadamente fez importante correlação entre as condições socioeconômicas dos bairros e o número de homicídios.

Desta forma, elevou-se o debate ao propor aos leitores uma explicação menos preconceituosa e mais complexa em relação aos inúmeros aspectos que podem amparar uma discussão ajuizada sobre a questão da violência na cidade. 

As populações que vivem em bairros como Canindezinho, Parque Presidente Vargas, Planalto Ayrton Sena, Conjunto Palmeiras, Jangurussu e Genibaú, por exemplo, além dos problemas sociais e econômicos são estigmatizadas por viverem em “territórios ensanguentados”. Este e demais estereótipos urbanos - o bairro violento - se impregnam nos seus moradores promovendo uma segregação residencial simbólica.  

Quando, repetidamente, as paisagens urbanas destas áreas são exibidas aos telespectadores com foco nos corpos e no sangue, desloca-se o debate social que é pertinente.  

Olhamos para a existência de um cadáver, e esquecemos de analisar e falar sobre as inúmeras ausências de infraestrutura e oportunidades refletidas naquelas mesmas paisagens.

Não falamos da ausência da creche, da calçada, do saneamento e do emprego. Não falamos o porquê de crianças não estarem aflitas perto de corpos sem vida.  

As imagens e os roteiros das reportagens não detalham as histórias de vida de milhares de trabalhadores e trabalhadoras que ali residem. Outras cores da paisagem, que não seja o vermelho do sangue, ficam à margem das lentes.

Como bem me lembrou meu amigo e geógrafo Tiago Cavalcante, o colorido destes lugares na cidade é pintando pelas bibliotecas comunitárias, pelos saraus, pelos slams, pelo grafite, entre tantas expressões artísticas. 

Reitero nada ter contra os profissionais de televisão envolvidos nas coberturas policiais. Também não julgo os espectadores que absorvem e reproduzem os estereótipos. Os assassinatos acontecem, não há como esconder. Sua localização não é aleatória, existem explicações socioespaciais e policiais.

Porém, já passou da hora de expor estes bairros e os seus habitantes de forma mais complexa, sensível, equilibrada e respeitosa. 

 

"Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor”.