O Cristo nos lembra que, sem o pão nosso de cada dia, não conseguimos alimentar nosso corpo físico. Nesta mesma oração nos lembra que o perdão faz parte do convívio daqueles que partilham o pão diariamente. O pão alimenta o corpo físico e o perdão alimenta nosso espírito. A palavra perdoar é composta de duas outras palavras: “perder” e “doar.” Perder o quê? Perder o ódio que alimenta a violência, a mágoa que envenena a vida.
Quando perdoo, renuncio ao direito de vingança e me permite dar um passo na construção de uma cultura de paz. Guardar mágoa é como quem toma veneno e espera que o inimigo morra. A mágoa só faz mal a quem a guarda. Perdoar não é esquecer e sim, compreender que não se pode crescer ficando preso ao sofrimento. A falta de perdão nos aprisiona, destrói projetos, aborta sonhos e compromete o futuro. Nos adoece trocando mágoa, desgosto, amargura e ressentimento que pode nos levar à depressão, crises de ansiedade, pânico, câncer e até doenças cardíacas.
O perdão é um potente remédio para as feridas da alma e o único que evita a necrose da alma. Quando eu perdoo o que ganho? O que recebo? Tenho a chance de prosseguir o caminho de vida sem o peso do fardo incômodo da mágoa que torna a vida amarga. Se a mágoa paralisa, torna o fardo da vida pesado, o perdão abre a possibilidade de libertar de tudo que leva ao desvio do caminho de uma vida mais fraterna e serena.
Só se condena o que não se compreende. E o que não é compreendido? Que o outro não é culpado pela nossa infelicidade e sim a imagem que eu tenho do outro dentro de mim. Quando o outro se torna tela de projeção de nossas fantasias, de nossas carências, ele não existe mais enquanto ser distinto de nós, enquanto alteridade, mas como depositário de nossas expectativas. E ai dele se não corresponder! A mágoa e a vingança são a expressão da inconsciência deste equívoco. Portanto, só perdoa quem tem consciência desse equívoco.
Todo perdão concedido é um ato de perdão também a si mesmo pelo seu próprio equívoco. “Eu te perdoo por descobrir que você não poderia corresponder às minhas expectativas”. Não foi o outro que me causou decepção, frustração e, sim, eu que me equivoquei. Quando o equívoco é desfeito, o outro emerge como sujeito livre e não mais como objeto prisioneiro de projeção de minhas carências e fantasias. O perdão torna-se bússola do caminhar consciente, atento aos equívocos tão presentes nos relacionamentos.
Perdoar o outro abre também a possibilidade do perdão pelo outro que participou deste equívoco. “Eu te perdoo porque compreendi que todo conflito foi gerado inconscientemente pelos “personagens que representamos”, o que impossibilitou um relacionamento verdadeiro de sujeito a sujeito”. “Eu não fui eu e você não foi você”. Fomos interlocutores possuídos por personagens e expectativas geradas por nossas carências. Neste sentido, fica fácil entender a célebre frase que Cristo proferiu quando estava sendo pregado na cruz: “Pai, perdoai porque não sabem o que fazem” (Lc. 22,34). Cristo percebeu, na sua infinita sensibilidade de terapeuta, que todas as agressões dirigidas a ele não eram pelo que ele era em si, mas pelo que ele representava, pela mensagem de amor que pregava, em um contexto de violência.
Aquele que rompia com a lei do talião, que pregava olho por olho e dente por dente. Ele agia na contramão da lei do talião e dizia: ama ao outro como a ti mesmo. Se te batem em uma de tua face, oferece a outra. Não era uma mensagem conformista e sim revolucionária. Ela se opunha radicalmente a lei da violência que gera violência, pelo amor se combate a violência. Sua imagem, sua mensagem, revelava esse lado obscuro, belicoso, que cada um tem em si, onde o ódio e a violência fazem a sua morada.
Matar o Cristo foi uma tentativa do homem de se livrar do que ele despertava dentro de cada um de nós: A hipocrisia em julgar e condenar os outros que nos contradiz, manter uma aparência em detrimento da essência. “Quem não tem pecado que atire a primeira pedra”. Cristo foi objeto de projeção de todos os pecados da humanidade e, por compreender isso, aceitou a morte para poder libertar o homem dos seus pecados. Morto entre dois ladrões, ele foi capaz de libertar, pelo perdão, o companheiro de crucifixão. Receber agressões, ser vítima de ódio e não revidar com a mesma moeda, é um ato de grandeza e nobreza de alma.
No convivo familiar existem pontos de vistas diferentes, conflitos onde nos magoamos e somos magoados, ferimos e somos feridos. Para se livrar dos efeitos nocivos dos conflitos, só nos resta fazer uso do perdão. No mundo atual, onde o ódio é nutrido pelas fake news, precisamos estar atentos para romper com esta rede do mal que dissemina ódio e violência. Se por um lado as doenças de nossos corpos físicos são causadas por micro-organismos patogênicos e tratados por profissionais especializados usando antibióticos específicos, no campo de nossa “saúde relacional, integral” as “enfermidades da convivência” os “sofrimentos”, as “dores da alma”, são ocasionadas por mágoas e ressentimentos guardados.
As pessoas não estão adoecendo de hipertensão, de colesterol alto e sim de ódio, de mágoas e raivas somatizadas em nosso corpo. Esquecemos os princípios e leis que regem uma vida saudável, como a qualidade da alimentação, corpo são em mente sã, o respeito à diferença, a reciprocidade nas relações, o valor da partilha, a necessidade de repouso, a troca de afetos e usar o perdão para fazer uma faxina de nossa alma.
Neste sentido, o “tratamento”, a “cura” passa por reativar a memória. Lembrar o que já se sabe, mas está esquecido: o pão alimenta o corpo e o perdão nutre a alma. Não seria um de nossos papéis como cuidadores lembrar o que foi esquecido, despertar o que está adormecido, suscitar lembranças para que a pessoa descubra o caminho a seguir, as opções a serem feitas?
Quando é dada a liberdade ao outro pelo perdão, o liberamos para seguir seu caminho sem ressentimentos, tem-se a possibilidade de libertação pessoal sem emoções que paralisam, sufocam e tornam o caminhar ofegante, sofrido e doloroso. Perdoar não é uma virtude e sim uma necessidade.