Do Suassuna só conheço o Auto da Compadecida 

A mensagem de Suassuna segue viva e a nova exibição chega em momento oportuno. Sucesso de público, minissérie dirigida por Guel Arraes no fim dos anos 1990 retorna cada vez mais atual às telinhas 

Se tinha um filme dos Trapalhões que me deixava bolado era o "Os Trapalhões no Auto da Compadecida". Curtia tudo do quarteto no cinema. Era fã. Porém, essa especialmente escapava do agrado. A peça teatral de Ariano Suassuna (1927-2014) volta aos holofotes com o relançamento comemorativo da minissérie exibida em 1999. A partir desta terça (7), a audiência mergulha novamente no enredo na TV Globo, após a novela “Amor de Mãe”.

O sucesso dirigido por Guel Arraes me fez dar uma sacada novamente no trabalho dos Trapas. A primeira surpresa do reencontro veio com o ano do lançamento. Na minha cabeça, o filme parecia ser coisa dos anos 1970. 1987 é a data exata. Rever a produção filmada por Roberto Farias (1932-2018) entregou outros contextos. Entendi minha cisma com a parada.

Nos anos 1980, por volta dos meus seis ou sete anos, testemunhava a virada de mesa de Os Trapalhões no mercado cinematográfico. Há quem defenda que Renato Aragão buscou outros rumos para a franquia logo após o insucesso de "O Auto da Compadecida". Depois das críticas mornas (ou baixa bilheteria), o também produtor e empresário decidiu por investir no fácil.

É quando estrelinhas teen da música e TV daquele tempo começam a bater ponto nos trampos do quarteto. A qualidade é discutível e tome Dominó, Angélica, Polegar, Gugu e outras tranqueiras. Mesmo assim, nada disso espantava o sacro momento de ir ao cinema nas férias ver um filme dos humoristas.  

Algumas observações atuais explicam o fato de  "Os Trapalhões no Auto da Compadecida" destoar de outros filmes do grupo. A interpretação de João Grilo por Renato pouco recordava o Didi de outros carnavais. Dedé tá bem como Chicó (mesmo declamando as falas na canastrice). Zacarias deixa as caretas de lado e mostra outra postura diante das câmeras na pele do padeiro muquirana. Mussum quebra quarta parede, filosofa e adentra um humor mais silencioso. Definitivamente não estava ali o meu herói de “mé”.

Hoje percebo o quanto os Trapas foram corajosos. Meteram um texto anárquico nos peitos da molecada. Julgamentos, deus, diabo, traição, racismo, ganância, exploração, violência, desejo, pilantragem, tava tudo ali no texto de Suassuna. Aquilo era demais para quem pirava com o Tião Macalé gritando "Nojento!" na TV.

Plim plim

Uns 20 anos depois rolou a versão do Guel Arraes. Como sacava parte da história por conta do filme de 1987 assisti os capítulos com atenção. Foi outra experiência. Algumas situações daquele universo eram bem mais críveis e perceptíveis. O ritmo dos diálogos, edição, som, interpretações.

Para quem a TV era uma babá nos anos 1980, o programa  “TV Pirata” explodiu mentes. Os cortes ágeis faziam do humorístico uma recriação enfurecida e hipnotizante da revista MAD para as telinhas. Outra brisa boa daquele período era o “Armação Ilimitada”. Ambos tinham assinatura de Arraes.

Os dois trabalhos foram considerados marcos na linguagem da TV brasileira e alavancaram a carreira do pernambucano. Em 1991, o diretor assumiu o comando do núcleo que leva seu nome. Seguiram-se produtos como "Programa Legal" (1991-1993), "Brasil Legal" (1995-1997), “Comédia da Vida Privada” (1995-1999), “Os Normais” (2001-2003),  entre outros.

Roteirista e produtor artístico, a partir de 1999, passou a conciliar TV com o cinema. Acontecem “O Auto da Compadecida” (1999), “Caramuru – A invenção do Brasil” (2000), “Lisbela e o Prisioneiro” (2003), “O Coronel e o Lobisomem” (2005) e “A Grande Família” (2007).

Gaita mágica

Resumindo. A união da pegada televisiva do núcleo comandado por Arraes e uma história conhecida desde criança fizeram de “O Auto da Compadecida” (1999) um sucesso para mim. Deu certo. A sagacidade de Suassuna naquele texto é didático e libertador. A terra dos "paraíbas" resulta da injustiça social e exploração dos poderosos.

Esgarça a tirania dos mercadores de fé. Do esquecimento. Taperoá é tão Brasil quanto qualquer cidade grande do País. A manada de Chicós é maioria. João Grilo se doer pelo fato da cachorra da patroa comer bife passado na manteiga é um soco na barriga. Abracei a revolta do personagem.

Também vi certa vez com um “Auto da Compadecida” na madrugada da TV Cultura. Era batata sempre rolar um filme maluco na noites de sábado. Aqueles europeus embaçados, muita coisa fina. Bem, assisti e nada de ornar. Era o filme "A Compadecida", de 1969. Antônio Fagundes e Regina “namoradinha do Brazil” Duarte no elenco era um pouco demais.

Em suas diferentes versões, o “Auto da Compadecida” alertou para inúmeros problemas oriundos do esquecimento e da ganância. A mensagem de Suassuna prossegue viva e a nova exibição chega em momento oportuno.

Lembra do último dezembro? Quando o “homem de bem” revelou todo um fervor doentio ao ver Jesus retratado com gay pelo Porta dos Fundos? Pois, é. Quem leu ou assistiu a obra (seja no teatro ou TV) e ficou magoado com o especial de Natal (sem graça, diga-se) da Netflix entendeu patavinas do universo pensado pelo autor paraibano.

Das contradições da vida. Como eles (a turba enfezada e feliz com ataques de coquetel molotov), do Suassuna, eu só conheço “Auto da Compadecida”.