Três dias de folga? Saiba como funciona a jornada de 4 dias, já adotada por empresas no Brasil

Legislação brasileira permite que carga horária seja reduzida, contudo, empregadores não podem diminuir o salário

A notícia, no meio da pandemia e do aumento do número de casos de burnout, sobre a adoção de um regime de carga horária menor de trabalho deixou muitos trabalhadores em polvorosa com a possibilidade. Empresas de países como Islândia, Nova Zelândia, Japão e Espanha têm aderido à jornada laboral de quatro dias e, surpreendentemente, visto a produtividade crescer. 

Embora não exista um padrão específico, a jornada laboral de quatro dias consiste em conceder três dias de descanso remunerados por semana aos colaboradores. Em 2019, a Microsoft do Japão, por exemplo, adotou esse modelo de trabalho e observou um aumento de 40% na produtividade.  

Com o propósito de promover um maior equilíbrio entre vida pessoal e profissional, o modelo pode virar tendência no Brasil? 

O número de negócios tentando fazer uma adaptação a jornadas mais flexíveis vem crescendo no País. Com uma equipe formada por 11 pessoas, os sócios da agência de comunicação Shoot, que atua há 11 anos no mercado, decidiram no ano passado adotar a política de trabalho em quatro dias. 

A ideia, de acordo com Luciano Braga, um dos sócios, surgiu, pois os modelos tradicionais de trabalho não se encaixavam bem na proposta da agência. Hoje, a equipe trabalha de forma integral em home office. 

“A gente cuida muito da nossa liberdade individual, prezamos por ter uma rotina saudável entre vida pessoal e trabalho, isso foi apenas uma consequência”, relata.  

Para isso, passaram por três meses de testes com folgas sempre às sextas-feiras e constataram ser possível entregar todas as demandas da semana com apenas quatro dias de expediente. 

Produtividade e satisfação  

Após o período de testes, em fevereiro deste ano, a política se tornou fixa. O empresário explica que, para que a agência funcione durante toda a semana, a equipe foi dividida em dois grupos: um tem a folga na segunda e o outro, na sexta.  

“Tem coisa que não pode parar, mas vimos que é possível alocar em quatro dias de trabalho para que as pessoas possam ter mais tempo livre. Queremos que elas tenham esse dia livre, porque sabemos que o trabalho é importante, mas a vida pessoal também é”.  
Luciano Braga
empresário

De acordo com Braga, neste primeiro mês nenhuma demanda atrasou e a produtividade se mantém a mesma. Para ele, os próximos meses devem ser ainda melhores, já que a colaboração e organização têm permitido que as demandas sejam realizadas.  

Redução desde 2017 

Na Crawly, empresa que trabalha com automação de dados, o regime de trabalho em quatro dias foi aderido ainda em 2017, mas somente para a equipe de Desenvolvimento. Thiago Veloso, head de Marketing da startup, explica que, à época, a estratégia foi pensada como um benefício para que pudessem competir com as grandes empresas.  

“Naquela época, éramos uma empresa nascendo, precisávamos nos destacar para atrair colaboradores com benefícios diferenciados, como toda startup tentamos inovar. Isso nos levou a fazer diversas pesquisas e descobrimos que era possível”, conta.  

Assim, com o crescimento da empresa, a política foi implementada na metade de 2021 para todos os 20 funcionários que atuam nas áreas de Desenvolvimento, Marketing, Comercial e Administrativo. Hoje, a carga horária é de oito horas diárias. “A gente considera a sexta-feira como um bônus”. 

De modo a organizar melhor o esquema de trabalho, a empresa estabeleceu como dias de trabalho dos colaboradores de segunda a quinta-feira, já a diretoria trabalha os cinco dias úteis normalmente. “Para a diretoria, ter esse dia com a equipe off dá mais tranquilidade para que possamos nos aprofundar em questões estratégicas da empresa, por exemplo”.  

"A gente percebeu que todo mundo começou a ter mais tranquilidade nas entregas, fazem com mais qualidade, estão mais participativos e engajados. O pessoal deixou de trabalhar somente pra entregar demanda, passaram a pensar melhor no que fazem, no que podem fazer, temos um engajamento bem melhor”.  
Thiago Veloso
head de Marketing

Sexta com meio período 

Uma outra modalidade que tem se tornado possibilidade para as empresas é a adoção do meio período. É o caso da Gupy, negócio que atua com tecnologia para Recursos Humanos. Desde junho de 2021, os mais de 600 colaboradores têm direito ao short friday, ou seja, trabalham apenas meio período (quatro horas) na sexta-feira.  

“Quando sentimos o volume e o ritmo de trabalho aumentar consideravelmente, motivado pelo nosso crescimento acelerado, buscamos uma solução para melhorar a qualidade de vida dos nossos colaboradores de maneira que tivesse um impacto positivo também em sua produtividade”, explica Gianpiero Sperati, líder de Recursos Humanos da Gupy. 

Inicialmente, a política foi testada por três meses para que pudessem observar como isso poderia impactar a produtividade dos funcionários.  

“Com uma maior satisfação e bem-estar, pode-se dizer que a produtividade se manteve e em alguns casos até aumentou. A sensação é de que eles estão cada vez mais alinhados com o nosso propósito e valores”.  
Gianpiero Sperati
líder de Recursos Humanos

Para ele, a jornada laboral de quatro dias pode se tornar uma tendência, já que as empresas estão cada vez mais cientes de sua responsabilidade quanto ao bem-estar e saúde mental dos colaboradores. 

 

A experiência na prática 

Há 10 meses na Crawly, o analista de marketing, Douglas Gomes, conta que a experiência foi uma novidade, pois não sabia nem que era possível trabalhar apenas quatro dias na semana. “Para mim, foi excelente, existe uma questão pessoal que envolve muita organização e disciplina para que a gente consiga fazer as entregas e tem fluido super bem”.  

 “Aprendi a priorizar meu tempo e individualmente falando tem sido incrível, porque tenho um dia comercial livre quando preciso resolver algo, seja para marcar médico, resolver todas essas questões burocráticas, você acaba se organizando pra isso”.  
Douglas Gomes
analista de Marketing

De acordo com Gomes, que já trabalhou em outros regimes, é possível perceber a diferença que faz ter esse dia útil livre, inclusive, tendo mais tempo para ser criativo no trabalho.   

“A gente acaba associando o excesso de trabalho com a qualidade do trabalho, mas são coisas que acabam extrapolando o limite do funcionário, causando baixa produtividade, a cabeça precisa funcionar e o excesso de trabalho e essas jornadas malucas não permitem”, relata. 

A opinião é reiterada pela redatora júnior da Shoot, Fernanda Almeida, que entrou na empresa antes do regime ser implantado. “No início, foi bem desafiador, mas abraçamos aquilo como um objetivo e fizemos toda a uma organização para que não houvesse impacto negativo na nossa produtividade”, diz.  

“A Shoot nunca teve uma dinâmica de trabalho de empurrar pautas além do que conseguem suportar, sempre tivemos tempo pra pensar criativamente, então facilitou muito. Mesmo com um dia a menos, conseguimos entregar nossas demandas com facilidade”.  
Fernanda Almeida
redatora júnior

Para ela, tem sido fundamental ter autonomia para resolver as pendências da vida pessoal que não possíveis no fim de semana. “Além de ser um dia a mais de descanso, se eu quiser fazer nada, também posso. Isso me traz mais motivação para trabalhar”, assume.  

O que diz a legislação brasileira 

Casos como os dessas empresas são possíveis uma vez que a legislação brasileira não impede a redução da carga horária. A advogada e membra da Comissão de Direito do Trabalho da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-CE), Giovanna Barros, pontua que a limitação prevista pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) é de apenas a quantidade máxima que pode ser trabalhada.  

“A redução não é proibida no Brasil, o que não se pode fazer é aumentar a jornada de trabalho além do máximo permitido. Hoje, a nossa jornada padrão é de 44 horas semanais e oito horas por dia, podendo fazer duas horas extras no máximo por dia, com um dia de descanso remunerado”, explica. 

Contudo, para as empresas que decidirem adotar a política da redução de carga horária, a advogada salienta que é vedada a redução salarial. Ou seja, aqueles funcionários já contratados antes da mudança não podem ter prejuízos de remuneração, mas a regra é diferente para aqueles contratados posteriormente.  

"É possível que a empresa contrate um novo funcionário com uma remuneração menor, desde que não seja menos que o salário mínimo vigente. Acontece que, se esse colaborador for para a Justiça pedir equiparação salarial, ele vai conseguir, porque pode provar que a produtividade é a mesma de quem recebe mais”. 
Giovanna Barros
advogada

Barros aponta ainda que não é necessária mediação de sindicatos trabalhistas para que a mudança seja feita, basta que um acordo seja celebrado entre empregador e funcionário. Além disso, o colaborador tem todos os direitos resguardados, tais como 13º salário, FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), etc.  

Modelo requer cautela 

Apesar de parecer vantajoso, a gestora executiva do Grupo Mrh, Valéria Mota, pondera que é preciso ter cautela, já que uma jornada reduzida sem a devida organização e monitoramento pode implicar em uma maior carga de trabalho concentrada em menos dias.  

"Pressupõe-se que nos quatro dias ela teria todas as condições para atingir as metas, então é preciso readequar essa carga para que o nível de cobrança aos funcionários fique tão alta. Essa modalidade é ideal para aquelas empresas que trabalham com demandas, por exemplo”, pontua.  

Por isso, a especialista em RH afirma que não é possível afirmar que isso se tornará uma tendência no Brasil, já que depende muito de cada setor e área. Um hospital, por exemplo, para reduzir a carga horária, teria que contratar mais profissionais, o que, conforme Mota, seria inviável.  

“Vai muito além de só os quatro dias de trabalho, é preciso adequar a jornada pelo período que seja tranquilo pra qualidade de vida do trabalhador, desde que não haja prejuízo salarial também, então depende do segmento, do público, da estratégia, dos indicadores”.  
Valéria Mota
gestora executiva

Além disso, pela conjuntura atual de trabalho e de salário, a redução pode provocar um efeito ‘rebote’, em que a pessoa acaba assumindo outros trabalhos para complementar a renda. Outro fator são as condições proporcionadas ao trabalhador, como lacunas tecnológicas, cultura organizacional e deficiência de capital humano, por exemplo, comparadas a de outros países.  

Um estudo realizado em 2019 sociólogo e professor José Pastore, professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP), constatou que um trabalhador brasileiro gasta uma hora para realizar a mesma atividade que um americano faz em 15 minutos, um alemão em 20 minutos e um coreano também em 20.  

"Essa conta não é justa, vai muito além. Não é só sobre o volume de trabalho e não é possível tratar essa redução de carga horária como uma ferramenta para combater o burnout. As empresas precisam conhecer o perfil do trabalho para saber que políticas são necessárias pra promover o bem-estar do trabalhador”, conclui.