O que está por trás do imbróglio entre a usina de dessalinização e as empresas de telecomunicação?

Autorização da obra de usina de dessalinização na Praia do Futuro está em análise no Governo Federal

Há alguns meses, a construção da usina de dessalinização na Praia do Futuro, em Fortaleza, e a contrariedade do setor de telecomunicação parecem roteiro de uma "história sem fim".

Isso porque, nesta semana, mais dois episódios colocaram o assunto novamente no centro de embates envolvendo Cagece, empresas de teles, Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e órgãos governamentais. 

Mas o que está por trás desse imbróglio?

Na quarta-feira (20), o presidente da Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece), Neuri Freitas assinou o que a empresa chama de um artigo de opinião, no site da companhia, afirmando que a Superintendência do Patrimônio da União – SPU/CE havia emitido uma autorização e que a obra teria início em março de 2024 e término em 2026. (Como está reproduzido na imagem abaixo)

Porém, um dia após, por meio de nota, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, do qual a SPU faz parte, informou que "a construção da Usina de Dessalinização na Praia do Futuro ainda se encontra em análise no âmbito da Secretaria do Patrimônio da União". 

O documento ainda reforçou que a definição sobre esse caso requer análise técnica e jurídica do mérito, envolvendo não apenas as unidades do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI). 

"Por se tratar de obra em área com presença de infraestrutura crítica de telecomunicações, deverão ser consultados outros órgãos e as instâncias colegiadas competentes no Governo Federal, com o intuito de compatibilizar o uso dos bens públicos entre os diferentes empreendimentos."

Ao receber a nota, o Diário do Nordeste procurou a Cagece, ainda na quinta-feira (21) e obteve retorno na tarde dessa sexta-feira (22). O texto não esclarece sobre a autorização ou ainda análise da SPU, mas sim, dá conta da busca por um entendimento com a Anatel.

"A Companhia de Água e Esgoto do Ceará informa que irá analisar e responder todos os questionamentos colocados pela Anatel acerca da implantação da planta de dessalinização de água marinha na praia do Futuro."

Ainda segundo o texto, nessa semana, juntamente com o governador Elmano de Freitas (PT), a Cagece participou de uma reunião com o ministro das Comunicações, Juscelino Filho, a ministra da Gestão e da Inovação, Esther Dweck, e representantes da Anatel e SPU, para debater acerca de tema. 

"Na oportunidade, a Cagece reforça que trabalha no sentido de obter todas as autorizações e alinhamentos com as diretrizes das diversas esferas de governo e órgãos que possuem competência para tratar do tema, reconhecendo, inclusive, os desafios em torno da ausência de legislação ou regramento no país sobre o funcionamento de outras atividades na área onde funcionem cabos submarinos."

"A Companhia reitera ainda o compromisso com o amplo diálogo acerca do tema, na busca por um consenso que possa deixar as empresa de cabos submarinos ainda mais confortáveis, mesmo após todo o processo democrático construído desde 2017", disse em nota.

Também demandada pelo Diário do Nordeste, a Anatel, representada pelo conselheiro em exercício da presidência, Vicente Aquino, e pelo superintendente de Controle de Obrigações, Gustavo Borges, informou ter participado da reunião onde foi firmado acordo.

"A Cagece deverá providenciar complemento ao projeto apresentando novos estudos, avaliações e planejamento mais detalhado e específico de gestão de riscos, quanto à infraestrutura local, considerando a fase de construção e também a fase de operação. A apresentação desse complemento ao projeto provocará uma reanálise célere por parte da Agência reguladora."

A eterna queda de braço

A "queda de braço" envolve, de um lado, o convênio Águas de Fortaleza, que afirma que os estudos apontam que a usina não oferece risco, e no outro, o setor de telecomunicações, que diz que a internet do País pode parar caso algum incidente futuro ocorra.

Segundo último documento da SPU, é fato que o órgão ligado ao Governo Federal diz não haver  nenhum impedimento para um pedido de autorização de obra. 

"Não há óbice por parte desta SPU/CE no pedido de autorização de obra." (Como se pode notar na imagem abaixo)

Porém, não há autorização para o início da obra. A reportagem fez contato com a SPU lotada em Brasília para pedir explicações de como é esse trâmite e em que fase estaria, mas não recebeu retorno até a publicação desta matéria.

Insegurança jurídica

Em novembro passado, reportagem do Diário do Nordeste afirmava que empresas de telecomunicações, instaladas na Praia do Futuro, sinalizaram possíveis desinvestimentos no hub de cabos submarinos, caso a usina de dessalinização seja construída no local. As empresas alegam, entre outros pontos, insegurança jurídica. 

Uma das empresas ouvidas naquela reportagem foi a Claro, que é dona de três cabos na Praia do Futuro, além de um quarto cabo da Embratel, que pertence ao grupo de telecomunicação.

Segundo o vice-presidente de relações institucionais da empresa, Fábio Augusto Andrade, o temor das operadoras é que Dessal do Ceará interfira nas telecomunicações de toda a América do Sul, preocupação que deve afugentar novos investimentos.

“Todas as empresas que operam na Praia do Futuro vão judicializar a questão da usina, porque não é possível a convivência da usina com a chegada dos cabos submarinos. A curto e a médio prazo, vão apresentar problemas. Tem locais de interseção no projeto-base que, se não forem alterados, vão causar interferência nos cabos”, disse ele em novembro.

Reserva de mercado

Em dezembro deste ano, em texto publicado no site da Cagece, o presidente da companhia, Neuri Freitas afirmou que as operadoras de telefonia e internet tentam inviabilizar a implantação da planta de dessalinização de água marinha. Ele também chama o movimento das teles de reserva de mercado. 

"Para a Cagece, a fala insistente de alguns gestores das empresas de telefonia e internet em torno desta falsa narrativa, construída por meio de um discurso que não possui sustentação técnica, exige também uma reflexão crítica sobre os reais interesses dessas empresas. Ao que parece, elas querem privatizar a Praia do Futuro, formando uma reserva de mercado, em nome de um lucro futuro, com pouca preocupação com o social", disse ele.

Em entrevista ao Diário do Nordeste em setembro deste ano, Neuri também afirmou que as empresas de telecomunicações não querem nenhuma outra infraestrutura na Praia do Futuro. 

"Eu percebo que eles estão usando uma reserva de mercado, eles não querem nenhuma outra infraestrutura para a Praia do Futuro, só a deles. À medida que eu coloco uma planta de dessalinização lá, segundo eles, vai estar tirando espaço para chegar mais cabos, para qualquer outra situação deles, então vejo uma privatização da praia no formato que eles querem. Eles não dizem isso, mas é o sentimento que eu tenho".

Segundo a Cagece, cerca de 720 mil pessoas serão diretamente beneficiadas com o projeto, por meio de uma Parceria Público-Privada firmada entre a companhia de água e a empresa Águas de Fortaleza. A planta de dessalinização de água marinha terá capacidade para produzir 1m³ (mil litros) de água por segundo, vazão que será destinada ao macrossistema de água de Fortaleza.

País pode ficar sem internet?

Apesar das justificativas da Cagece, Eduardo Tude, especialista em telecomunicações e presidente da consultoria Teleco, ouvido recentemente pelo Diário do Nordeste, acredita que a mínima possibilidade de instalação de usina deve ser prejudicial para o hub de cabos, e que caso isso concretize, poderá deixar os nove estados nordestinos até sem internet.

“Pode ter o rompimento dos cabos, porque esses cabos submarinos, quando você os constrói, busca áreas onde reduz a probabilidade de acidentes. Quando você está saindo do mar e vindo para a praia, você aumenta essa probabilidade porque tem barco passando, tem gente. Então, se procura isolar esses locais”, argumentou o especialista.

Sobre a adequação já feita no projeto, que afastou de 50 para 500 metros o ponto de captação da água do mar e os cabos submarinos, o especialista considera irrisório.

“O reparo de um cabo submarino é um processo muito demorado. Normalmente no mar, vem um navio e leva mais de um mês para consertar. É um risco muito grande e quando se escolheu ali para fazer os cabos submarinos, tudo isso foi levado em conta, e se buscou justamente uma região para minimizar esse risco. Na hora que faz essa usina, está aumentando muito esse risco”, analisou.

Tude ainda afirma que caso a usina e os hub se tornem vizinhos, esse seria o primeiro local do mundo. "Você tem que prevenir. E se previne na hora do projeto. Depois que construir, vão ficar os acidentes, não vai ter o que fazer”, destacou.