Poucos anos após a euforia do setor imobiliário, entre 2012 e 2015, com o lançamento de uma série de empreendimentos, a crise que se instaurou nos anos seguintes apresentou às construtoras e incorporadoras um grande vilão: o distrato.
Até antes da Lei nº 13.786/18 - que mudou a maneira de desfazer a compra de um imóvel -, empresários viram seus estoques subirem consideravelmente e o mercado local se viu encharcado.
Lembrar desse cenário é fundamental para que seja compreendido o fenômeno do mercado de venda de imóveis durante o ano de 2020, conforme explica o presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Ceará e empresário do ramo, Patriolino Dias.
Diálogo Econômico: Confira mais entrevistas
Entrevistado no Diálogo Econômico desta semana, ele explica que o grande estoque decorrente do volume de lançamentos durante a pujança da economia e alto volume de distratos, combinado a uma Selic (taxa básica de juros da economia) de 2% que puxou para baixo o crédito imobiliário, fizeram do ano passado uma das melhores oportunidades para a aquisição da casa própria.
Para este ano, de acordo com ele, a previsão é que as vendas de imóveis cresçam 10% ante 2020, chegando a R$ 2,1 bilhões.
Diante das projeções dos economistas de aumento da Selic nas próximas reuniões do Comitê de Política Monetária do Banco Central, Patriolino avalia que a menor taxa é sempre mais atraente para o manter o ritmo das vendas de imóveis, mas pondera que se a taxa se mantiver até 6,5% ao ano, “o mercado consegue funcionar”.
Veja a entrevista completa:
Como está o estoque de imóveis no Estado? Esse estoque é composto por quais tipos de imóveis?
Nos anos de 2012 a 2015 foram lançados diversos empreendimentos e o mercado estava pujante até demais. Eu acho que tudo foi lançado demais. Eu nem culpo todos os lançamentos que tivemos não, até porque o que se lançava se vendia. Se você perguntar qual foi o problema ali (para o aumento dos estoques nos anos seguintes), eu vou dizer que foi um negócio chamado distrato.
Antes da lei dos distratos, o consumidor poderia entrar na justiça e, pela súmula que se tinha, ele recebia 75% do valor pago. Então você imagina: os construtores vendem, o empreendimento está lá com 80%, 90% vendido, viabilizado. Então ele pensou: para quê eu vou aguardar? Vou lançar outro.
E assim foi. Com o começo da crise em 2015, 2016, quando as taxas de juros começaram a subir e as pessoas ficaram preocupadas com a economia, tivemos muitos distratos e as construtoras tiveram que ficar pagando esses distratos. Tinha investidor que entrava, achava que não ia ganhar dinheiro e distratava.
Isso posto, o que aconteceu: até 2015 se lançou muito, teve essa onda de distratos que eu expliquei e o mercado ficou encharcado. Com isso, entre 2015 e 2019 praticamente não foi lançado nada e os estoques chegaram a aumentar em determinado período porque aumentava a quantidade de distratos.
Em 2018 e em 2019 já se observava uma diminuição desses estoques e no último trimestre de 2019 a Selic estava caindo, ela estava 4% ao ano. A Selic a 4% ao ano é excelente para o mercado imobiliário. Algumas construtoras que conseguiram diminuir os seus estoques antes já estavam prontas para poder lançar, então no último trimestre de 2019 foram lançados empreendimentos, alguns de altíssimo padrão com sucesso de vendas.
Na hora em que tivemos essa sinalização de que o mercado no último trimestre de 2019 estava melhorando, algumas construtoras saíram para as pranchetas, contrataram arquitetos, negociaram terrenos para fazerem esses lançamentos. Quando ia ter essa retomada dos lançamentos, que seria no primeiro semestre de 2020, veio a pandemia.
Na pandemia, obras foram paralisadas e também as pessoas paralisaram as vendas porque os estandes estavam fechados. Rapidamente algumas construtoras conseguiram fazer um benchmarking com algumas incorporadoras nacionais e viram que elas estavam vendendo online.
Então, aí olhando o copo pelo lado meio cheio em relação à pandemia, claro, sabemos que vidas foram perdidas e nisso não tem nada de bom, mas, olhando para o mercado imobiliário, a gente conseguiu antecipar dois anos de tecnologia na parte de vendas. Vimos uma desburocratização dos cartórios, com atendimentos online, coisa que cartório não fazia e eu acho que isso está mudando rapidamente.
Com a Selic a 2%, o mercado imobiliário nada de braçada. Então algumas construtoras que tinham algum estoque, diante uma taxa Selic a 2% - a pessoa não ganha nada deixando aquele dinheiro ali no banco - e outra coisa é que passaram cinco meses de lockdown, cinco meses em casa, então ele olhava cada rachadura que tinha na casa, cada pintura, cada detalhe… Essas pessoas que podiam partiram para um upgrade. Então você teve uma correria, tanto é que muitas construtoras ou zeraram ou diminuíram sensivelmente seus estoques.
Temos vários empreendimentos com estoques zerados e outros com já quase nada. Se você tem um lançamento em determinada data e, que só será entregue em cinco anos, e se tá faltando estoque, com certeza você vai ter em algum momento apagão dos imóveis, uma supervalorização em um ano e meio ou dois anos.
Em relação às vendas, como o mercado imobiliário cearense deve fechar este ano?
Em 2020 foram vendidos R$ 1,9 bilhão e a gente pretende que as vendas cresçam 10% desse valor em 2021, então nós acreditamos que vamos vender R$ 2 bilhões, quase R$ 2,1 bilhões. E principalmente por conta da diminuição dos estoques.
Eu comentei tudo aquilo para entender o porquê de agora haver esse crescimento tão acentuado. Em São Paulo, por exemplo, o crescimento mais acentuado foi em 2019, só que aqui a gente tem um delay. Tanto que lá às vezes entra em crise e aqui a crise é um ano ou dois anos depois.
Então isso está associado à diminuição de estoques e taxa de juros baixa. O mercado não consegue funcionar a 14% ao ano. Eu acho que nada se viabiliza com um percentual tão alto.
Houve impacto sobre os imóveis de segunda moradia, com as pessoas buscando qualidade de vida durante o isolamento? Como isso deve afetar os lançamentos nos próximos semestres?
Eu lembro que no fim de 2019 os empreendimentos de segunda moradia, no Porto das Dunas, Aquiraz, Cumbuco, contavam com um estoque gigantesco. Zeraram todos, todos em 15 dias.
Muita gente ainda está com medo e não vai viajar agora para Europa e Estados Unidos, nem para o próprio Brasil, então as pessoas partiram para garantir o seu lazer. Famílias que antes tiravam uma vez por ano para viajar para o exterior ou para o Brasil, ou duas vezes, não conseguiram viajar e ficaram enfurnados em apartamentos menores. Então elas partiram para comprar.
Inclusive porque elas sabiam que, ao adquirir esse imóvel de segunda moradia, ele serviria para o lazer da família e poderia servir para locação, auxiliando no pagamento da parcela. Então você vê que os hotéis de praia estão lotados, as casas em condomínios de praia estão locadas e, se você não fizer uma reserva bem antes, não consegue ou sai bem mais caro, então isso fez com que essas pessoas fossem atrás dessa segunda moradia.
Isso vai continuar assim? Eu imagino que não nessa velocidade, mas tem muito empreendimento de segunda moradia lançado já agora nessa euforia e que foi vendido tudo. É impressionante como as pessoas correm para isso. Pode ser que em três ou quatro anos, quando ficarem prontos, as pessoas mudem de ideia e tenhamos um estoque grande? Pode. Mas a demanda hoje ainda é grande.
Em relação ao possível apagão, tem então alguma tipologia de imóvel que vai ficar ou que já está em falta? A pandemia mudou o perfil dos imóveis construídos?
É impressionante. Nós, na nossa construtora (Dias de Sousa), fizemos uma pesquisa de mercado em agosto do ano passado e todo mundo fala que quer morar em um apartamento maior, com mais área de lazer, mais bem localizado. Porém tudo isso tem um preço. Então a gente vende o que cabe no bolso.
Existe aquela pessoa que prefere abrir mão da área do apartamento para conseguir morar em uma boa localização, como Aldeota e Guararapes. Outras pessoas preferem morar, por exemplo, no Eusébio, que é mais distante, trocando um imóvel de 70 metros quadrados por um de 120 metros quadrados. Há público para tudo e tudo que está sendo lançado, volto a dizer, lançado com prudência, está sendo absorvido, também com prudência.
Em meio a essa euforia do setor imobiliário, nós tivemos também um aumento de preços nos insumos da construção civil. Em que medida isso pode prejudicar a construção e o mercado imobiliário nesse momento de retomada da economia e de vendas aquecidas?
Com a pandemia, tivemos o auxílio emergencial, que foi e que é necessário. Pessoas passando fome precisam de auxílio. Mas você tem diversas pessoas que ou só tinham um banheiro em casa ou nem isso. Então você imagina: milhões de pessoas correndo para comprar PVC, bacia sanitária, tijolo e cimento. Por outro lado, se tinha a indústria fechada.
O que aconteceu é que houve um descompasso entre o que estava sendo produzido e o que está sendo vendido, gerando um aumento de preços exagerado. Em um primeiro momento, o cimento foi o vilão: cresceu 30%. O tijolo dobrou de preço. Mas, hoje, o nosso grande vilão é o aço.
O aço aumentou mais de 100% e a gente está preocupado. O INCC (Índice Nacional de Custo da Construção) não está refletindo todos os aumentos que a gente está recebendo.
E o que estamos fazendo diante disso? No caso do aço, nós estamos tentando importar. O primeiro carregamento de aço, que nós estamos trazendo da Turquia, deve chegar em outubro, e esperamos ter uma economia de 20%.
Essa economia vai se refletir no preço dos imóveis de alguma forma?
Mesmo com essa economia, nós estamos sofrendo. Não estava no nosso planejamento, nem no pior dos cenários, que em uma economia aberta como a nossa estaria dessa forma, então é complicado, porque o dólar não dobrou para o aço dobrar de preço.
Com a Selic a 2% sabemos que o crédito imobiliário acompanhou bem esses cortes na taxa. Começamos a observar agora um movimento de alta, com economistas prevendo que essa tendência continue. Quais impactos essa alta pode ter sobre o mercado imobiliário?
Eu me lembro que a taxa menor que fizeram no financiamento, se não me engano, era TR (Taxa Referencial) mais 4,75% ao ano. Justamente porque já previam esse aumento da Selic, porque quando se financia é por 20, 30 anos. Então eles iam ganhar em um primeiro momento para em outro momento perder um pouco e ter essa média.
Então mesmo tendo a Selic que a gente espera que fique aí em uns 4,75% ao ano, o banco já passou a taxa de 5,99% para 6,99%. E eu acho que ela vai se manter aí. Mas se você perguntasse até que taxa eu acho que é atraente para o mercado imobiliário, é lógico que a menor taxa é sempre a melhor, mas eu diria que até uns 6% ao ano ou até uns 6,5% ao ano, funciona no nosso mercado.
Vimos um movimento forte da Caixa Econômica nos últimos anos para facilitar o financiamento imobiliário com linhas diferentes, como IPCA, Poupança, Taxa Fixa. Você avalia que esse movimento forte da Caixa estimula uma competição positiva entre as instituições que trabalham com esse crédito?
A competição é sempre muito boa. Você vê que no aço a gente está sofrendo porque há três indústrias produzindo. Eram quatro, cinco, mas aí compraram uma, compraram outra e acabou ficando na mão de pouquíssimos.
E o nosso Sistema Financeiro da Habitação não é diferente disso. A Caixa consegue ser reguladora de mercado e puxou, sim, para baixo, as taxas de alguns bancos.
Mas eu diria que os bancos privados estão competitivos e estão com apetite. É lógico que eles estão mais restritivos porque eles passaram alguns problemas durante essa crise de 2015 a 2019 com algumas construtoras. Eu diria também que os lançamentos não ocorreram de forma mais rápida porque algumas construtoras ainda estão com problemas de crédito.
Isso ajuda, de certa forma, porque o mercado precisa voltar a viabilizar os empreendimentos. Entre 2015 e 2019 teve muita construtora que perdeu dinheiro. Porque como o estoque estava grande, oferta grande e demanda pequena faz o preço cair. E eu diria que o consumidor que comprou sua casinha própria usando o financiamento no ano passado pegou o melhor momento de todos. Esse vai ganhar com certeza.
Havia em 2020 uma preocupação em relação aos imóveis e salas comercias com o avanço do home office. Como esse regime de trabalho afetou o mercado de salas comerciais e espaços de coworking? Na sua avaliação, se trata de uma mudança sem volta? Ou esse mercado já começou a ter um reaquecimento?
Alguns falam que esse é o novo normal e que ninguém viaja mais para atender cliente, que não tem mais que ir para São Paulo fazer visita. Eu acredito que nós vimos que o mundo não é só presencial. Isso é fato. Mas no meu sentimento, o home office, sendo ele permanente, provoca uma queda de produtividade, mas existem pessoas que têm o rigor de cumprir a sua carga de trabalho.
Você deve conhecer alguém que está fazendo concurso e perceber o seguinte: raras são as pessoas que você vê que ficam em casa e conseguem estudar para concurso, que é cruel, são 12 horas de estudo por dia. A gente vê muito essas salas que alugam só um birô para essas pessoas. Às vezes eu pergunto para filhas de amigas que estudam o porquê de elas procurarem esses espaços se elas possuem uma casa bacana para estudar. Mas é porque ali ela tem a disciplina dela.
Esse negócio presencial eu acho que é diferente, então a gente descobriu que o mundo não é só presencial, hoje é mais fácil de chegar para o chefe e pedir para trabalhar de casa em determinado dia, então eu acho que em alguns casos vai funcionar bem, mas em termos gerais, eu acho que a produtividade diminui.
Eu imagino que em breve vão voltar os lançamentos comerciais, até porque depois que você lança, demora cinco anos para entregar e nem todo mundo coloca isso aí na conta.
Em abril deste ano havia um receio em relação aos recursos para o Casa Verde Amarela e 13 mil imóveis estavam correndo risco de ter as obras paralisadas por causa do Orçamento 2021. Qual é a sua avaliação sobre esse programa no Ceará e a substituição do Minha Casa Minha Vida?
Essa é a grande incógnita do setor. Eu acho que verba para acabar as obras que aí estão a gente consegue, até porque tem algumas que em dois meses acaba, mas ainda não está certo o futuro dessas obras para pessoas menos favorecidas.
Eu entendo o lado do Governo Federal, porque é subsídio público, mas são pessoas que ganham um salário mínimo de renda familiar, então para tirar elas das favelas é necessário um plano de estado em vez de um plano de governo. Então não pode deixar de ter esse tipo de coisa porque você não consegue fechar a conta com a taxa de juros que é a do Brasil.
Algumas regiões do Ceará e pontos de Fortaleza tiveram crescimento expressivo no mercado imobiliário de luxo. Na sua avaliação, esse mercado ainda tem grande espaço para crescimento? Como esse mercado se comportou na pandemia e quais outras regiões devem se destacar nesse sentido nos próximos anos?
Esse momento de retomada da construção civil está muito pujante. Você tem esses empreendimentos de altíssimo padrão, que estão vendendo demais, no Meireles, por exemplo, e praticamente não tem mais terreno. Para se ter uma ideia, tem um dos lançamentos na Beira Mar de 1.500 metros quadrados, uma torre de 50 andares, então pagaram uma outorga onerosa, caríssima para a Prefeitura viabilizar.
Isso é bom porque gera receita nova para o Município, mas fica cada vez mais restrito. Então quem adquire um imóvel assim sabe que vai ter uma valorização porque não tem mais outro daquele jeito, então isso é um fato.
E em outros bairros você vê lançamentos, como no Presidente Kennedy, vendendo muito bem, no Passaré também. O bairro Guararapes diminuiu o estoque sensivelmente. As pessoas estão voltando a querer morar no Guararapes, até porque essa região do Iguatemi para o lado sul é a região que mais cresce. Então o vetor de crescimento é Guararapes, Luciano Cavalcante e Seis Bocas, indo até o Eusébio.