Na era das mídias digitais, em que influenciadores de investimentos exercem maior poder sobre a população do que profissionais especializados tradicionais, é aconselhável que pessoas comuns, não especialistas em investimentos, tenham precaução e cuidado antes de aceitar recomendações de investimentos que podem se tornar um prejuízo não esperado.
Em mais um suposto exemplo de prejuízos incorridos por investimentos recomendados por "influencers" de rede social, três pessoas conseguiram arrecadar cerca de R$ 3,6 milhões de 273 investidores de vários estados do Brasil, entre eles cearenses.
Uma das supostas vítimas - que não quis se identificar -, chamada nesta reportagem de Lucas, relatou que conheceu Samuel Magalhães, morador de Fortaleza, nas redes sociais através dos perfis O Investidor e Oportunis, nos quais ele dava dicas de investimentos e apresentava propostas de oportunidades fora do sistema financeiro convencional.
Após um certo período acompanhando o trabalho, no início de 2019, Lucas foi abordado por Samuel que oferecia um projeto na área de logística. O 'corretor' estava disponibilizando cotas da Pharmlog, empresa de logística especializada na distribuição de medicamentos e materiais hospitalares localizada em Aparecida de Goiânia (GO).
Cada cota custava R$ 5 mil e o negócio prometia, através de contrato de mútuo, pagamento de juros de 2% ao mês durante 12 meses e a devolução do aporte inicial após esse período.
O material utilizado para atrair investidores traz dados de faturamento do setor farmacêutico e previsões de crescimento dos resultados para aquele ano, além de apontar Goiás como o terceiro estado no ranking de líderes do País na atividade.
A empresa em si foi descrita com diferenciais competitivos, como "a Inteligência logística, integrada com Know-how e alocação de recursos financeiros para maximizar os resultados na comercialização em Farmácias e Hospitais".
Ainda segundo a apresentação, a atuação da Pharmlog abrange a "captação de recursos, distribuição, logística, planejamento estratégico e inteligência comercial". A empresa ainda vinha se destacando "pelas boas parcerias que tem conseguido desenvolver na área farmacêutica, onde muitas delas são em caráter de exclusividade para todo território nacional, gerando uma maior segurança para a empresa e previsibilidade em seu fluxo de Caixa".
Uma dessas parcerias exclusivas seria com a PharmaScience, indústria farmacêutica fundada em 1989 e instalada na cidade de Betim (MG). Além do contrato de exclusividade, a Pharmlog também dava como garantia um terreno no polo industrial de Anápolis (GO) de 51,2 mil m² e avaliado em R$ 6 milhões.
"O percentual de retorno não era algo exorbitante que denunciasse de cara que era golpe. Eles também apresentaram garantia desse terreno, então parecia um negócio mais seguro", afirmou Lucas.
Início dos problemas
O cearense acabou, então, adquirindo duas cotas do projeto, somando R$ 10 mil investidos. No entanto, logo após alguns meses, o pagamento mensal dos juros prometidos começou a atrasar e, eventualmente, pararam de acontecer.
Os investidores buscaram, então, alguma explicação com Samuel Magalhães, intermediador da venda das cotas da Pharmlog, que respondeu, através de email, que a Pharmlog estava sendo incorporada à PharmaScience.
"Nesse momento, ficou claro que (a captação) foi algo que a Pharmlog fez para captar recurso e investir na PharmaScience", supõe Lucas.
No email em questão, Samuel informa que encaminha mensagem de Israel Freitas, sócio-diretor da Pharmlog, que pede desculpas pelos transtornos e explica a transação em curso.
"A Pharmlog foi criada para atender exclusivamente as demandas logísticas e de distribuição de indústrias farmacêuticas. Também fazemos parte do grupo de investidores que em dezembro de 2018 efetuou proposta para compra de parte da Indústria Farmacêutica PharmaScience. Em abril de 2019, chegamos a um acordo final em conjunto com um fundo de investimentos e iniciamos a transição total da gestão da Pharmlog para o Grupo PharmaScience"
A mensagem ainda pontua que os pagamentos atrasados seriam colocados em dias, embora o processo estivesse "se estendendo mais do que gostaríamos", e prometia a regularização até 20 de novembro de 2019, prazo que não foi cumprido, segundo os investidores.
O texto ainda afirmava que, "devido à integração com a PharmaScience", uma pessoa da própria indústria farmacêutica seria colocada à disposição para efetuar os pagamentos e acompanhar o processo.
Ligação com a PharmaScience
Após a perda da data indicada para a quitação dos débitos, alguns investidores chegaram a se reunir presencialmente na sede da PharmaScience, em Betim, com Samuel, Israel e Valdemar da Silva, sócio da PharmaScience.
Em ata do encontro, está registrado que "Valdemar esteve presente e reafirmou que todos os investidores serão pagos" e que "os pagamentos estão sendo realizados através da própria PharmaScience".
Dessa forma, novo cronograma foi estabelecido, indicando o dia 31 de janeiro de 2020 como o prazo para a regularização dos depósitos e assinatura do acordo de devolução do capital.
Em 23 de janeiro de 2020, a Pharmlog enviou uma notificação extrajudicial informando que a vigência do contrato seria prorrogada por mais 12 meses e alterando a taxa de juros de 2% para 1% ao mês mais correção monetária. A justificativa, segundo o documento, é que o "ajuste é de grande importância para a adequação ao fluxo de caixa da empresa e a liquidez dos pagamentos".
Em novo contato da empresa com os investidores, em 14 de fevereiro de 2020, Vanessa Freitas, irmã de Israel e também sócia-diretora da Pharmlog, assina documento que relata que "as condições financeiras adversas que o país atravessa fizeram a empresa tomar providências para continuar honrando seus compromissos sem prejudicar seu pleno funcionamento".
"Como era de conhecimento comum entre as partes, referido aporte financeiro tinha o objetivo de viabilizar a expansão dos negócios da Notificante frente ao seu claro potencial de crescimento, o que possibilitaria o pagamento da rentabilidade ajustada. Entretanto, por motivos completamento alheios a vontade da Notificante, as condições atuais não mais permitem o pagamento da rentabilidade pactuada", continua o texto.
Lucas lembra que, após as negociações e ajustes no contrato, o juro mensal voltou a ser pago e, entre setembro e novembro de 2020, foi realizada uma amortização de 10% do valor do investimento. Em 2021, no entanto, os juros voltaram a ser suspensos e nenhuma outra amortização do aporte realizado foi feita.
"O Samuel só diz que a gente precisa procurar a Pharmlog pra resolver, que ele foi só o intermediador, mas vários outros projetos semelhantes que ele divulgou também estão em situação parecida. As informações desses projetos, inclusive, foram apagadas dos perfis dele. Com o Israel, ninguém consegue mais contato. Já estamos há um ano sem retorno algum"
Laudo pericial
Um segundo "investidor" cearense, que também prefere não se identificar e será chamado de Eduardo, confirma a atuação de Samuel na divulgação de diversos projetos parecidos ao da Pharmlog através das redes sociais. O investimento dele, no entanto, chegou a 10 cotas, totalizando R$ 50 mil.
Com maior prejuízo, Eduardo, juntamente com alguns outros afetados pela situação, encomendaram uma perícia particular para reunir provas contra os responsáveis do projeto e, eventualmente, entrar com uma ação judicial e prestar queixa.
O laudo de 123 páginas, elaborado pelo escritório Gagliardi Soluções Periciais, em atuação há mais de 10 anos, reúne o modelo de contrato firmado entre a Pharmlog e os investidores, comprovantes de depósito do aporte em contas da empresa, a apresentação utilizada por Samuel, contrato social de sociedade limitada da Pharmlog, escritura e outros documentos que comprovem a existência e propriedade do terreno dado como garantia do negócio, etc.
Outras informações reunidas são fotos e a transcrição de áudio feitos em visita de investidores ao endereço indicado como a sede da Pharmlog, em Aparecida de Goiânia (GO). O local encontrado e registrado é bem diferente do ilustrado nas apresentações durante a fase de captação.
Além disso, o responsável do local encontrado relatou, em conversa gravada, que a Pharmlog alugava um espaço no imóvel, mas que desde meados de julho de 2020 saiu do local.
Segundo a transcrição que consta no laudo pericial, o próprio responsável pediu a saída da empresa após atrasos no pagamento do aluguel e compra de cerca de R$ 156 mil em produtos de outra empresa instalada no polo, também sem pagamento.
Em sua conclusão, o documento informa que se pode "evidenciar que nunca existiu uma sede oficial da Pharmlog, que tudo não passava de uma fachada para praticar a fraude pelos empreendedores da Pharmlog Vanessa Cristina da Silva Freitas, Israel da Silva Freira e Samuel Magalhães".
"Pelo todo exposto ficou evidente que foi realizada uma fraude premeditada pelos empreendedores Vanessa Cristina da Silva Freitas, Israel da Silva Freira e Samuel Magalhães com a utilização do projeto fachada Projeto Pharmlog Aparecida de Goiânia – GO", acrescenta o documento.
O que dizem os especialistas
O vice-presidente do Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças do Ceará (Ibef) e sócio-fundador da Aveiro Consultoria, Raul dos Santos Neto, esclarece que o contrato de mútuo, modalidade utilizada no caso, é um contrato de empréstimo comum de uma operação legal.
Segundo ele, qualquer empresa pode pegar dinheiro emprestado de outra empresa ou de pessoas físicas através desse tipo de contrato.
Dessa forma, a fraude pode ter ocorrido não pelo tipo de contrato, mas pelo não cumprimento do acordado ou pela criação de uma empresa de fachada para desvio do dinheiro.
Neto também pontua que o grau de risco de um negócio como esse está mais ligado à empresa em si e sua área de atuação do que com o tipo de contrato. Caso o projeto seja de uma empresa consolidada, já estabelecida no segmento, com capital aberto e governança, os riscos podem ser considerados baixos.
"Agora, se a empresa está no início, se o empreendedor quer começar do zero e está vendendo um projeto prometendo que daqui a um ou dois anos vai ter um belo faturamento, o risco relacionado vai ser mais alto", pontua.
O especialista também esclarece que esse tipo de negócio não requer um corretor de investimentos, podendo ser feito diretamente entre a empresa e o interessado.
Entre os cuidados que se deve ter ao considerar esse tipo de proposta, Neto ressalta a leitura minuciosa do contrado para saber exatamente as regras de entrada do negócio, as condições que vão ditar o relacionamento durante a vigência do contrato, e as regras de saída também.
Em casos de problemas, como o da Pharmlog, ele aconselha que há duas possibilidades: se houver provas de fraude, as possíveis vítimas podem procurar diretamente a Justiça Criminal. Se não houver provas concretas, a orientação é se direcionar à Justiça comum e pedir a execução do contrato.
No segundo caso, a devolução do dinheiro fica condicionada à existência de patrimônio e liquidez da empresa condenada. Caso não haja bens ou dinheiro em contas, as vítimas cotinuam no prejuízo.
Roney Castro, membro da Comissão de Estudos em Direito Penal da OAB-CE, analisou o laudo pericial elaborado a pedido dos investidores e garantiu que "não resta dúvida de que houve sim a prática de crime de estelionato, contra o que eles chamaram de investidores".
"Dependendo do Delegado que ficar encarregado das investigações ele pode qualificar os autores como incursos nos crimes de Estelionato cominado com Associação Criminosa", avaliou.
Ele ainda detalha que o crime de Estelionato prevê pena de reclusão de um a cinco anos e multa, enquanto o de Associação Criminosa prevê reclusão de um a três anos.
O que dizem os acusados
Procurada, a assessoria jurídica de Samuel Magalhães de Castro emitiu nota de esclarecimento informando que o mesmo "sempre agiu de modo sério, sem qualquer intenção ou ação sua que viesse a prejudicar a vida das pessoas. Em sua página nas redes sociais, falava sobre negócios, investimentos, sendo seu segmento de trabalho nas redes sociais".
O texto reitera que Samuel foi "mero intermediador do negócio" e que apresentou o projeto "de forma clara, considerando os riscos e garantias".
O comunidado ainda esclarece que "os contratos foram firmados em nome da empresa responsável pelo projeto (a empresa PharmLog) e a participação do Senhor Samuel se encerrava após a retirada de dúvidas e o fechamento dos contratos" e que Samuel "não possuía poder de mando sobre as operações, não gerenciava a empresa ou negócio, nunca recebeu valores de investidores".
A respeito do retorno financeiro de sua participação na intermediação do negócio, a nota pontua que Samuel "seria remunerado em razão de comissão por venda; as quais não recebeu da forma ajustada, sendo igualmente credor em relação a empresa Pharmlog, que lhe deve valores".
"O senhor Samuel agiu, como age; de boa fé! E não possui responsabilidade sobre o não pagamento dos investidores. Espera que a empresa PharmLog e a Pharmascience, empresa que assumiu as dívidas, até onde seja do seu conhecimento, honre com seus compromissos e garanta a melhor resolução das questões advindas com o negócio", conclui.
Questionado sobre a dívida e os indícios de fraude, Edmo Araújo, advogado representante da Pharmlog, limitou-se a disponibilizar o último documento de contato da empresa com os investidores, ocorrido em 14 de julho, enquanto a reportagem já apurava o caso.
A nota informa que a Pharmlog "está amealhando seus melhores esforços no sentido de minimizar os impactos decorrentes do insucesso do projeto que foi objeto do investimento" e apresenta proposta de plano de pagamento com deságio de até 70%.
O documento ainda pede que os interessados manifestem a intenção de adesão até o dia 21 de julho deste ano.
Conforme Edmo, o não repasse de mais informações e detalhes da versão da empresa foi uma decisão dos próprios representantes da Pharmlog.
Já a advogada da PharmaScience, Cristinanne Barreto, relatou que "não sei dizer sobre operações de captação feitas com a Pharmlog, até porque a Pharmascience não tem qualquer contrato com a Pharmlog. Aproveitando, já esclareço que não há qualquer vínculo entre Pharmacience e Pharmlog".
Segundo ela, a Pharmascience é uma indústria farmacêutica sólida, com 33 anos de mercado e aproximadamente 3 mil clientes espalhados por todo o Brasil, e que a Pharmlog constou nessa carteira de clientes.
Questionada sobre a suposta compra de parte da Pharmascience pela Pharmlog, ela descarta a transação.
Confrontada mais uma vez com a participação de Valdemar da Silva em reunião ocorrida na própria sede da Pharmascience com alguns dos investidores da Pharmlog, Barreto informa que Valdemar foi sócio da indústria, falecido por covid-19 em abril de 2021, e que desconhece "qualquer dívida da Pharmascience com a Pharmlog".
As negativas de vínculo ocorrem mesmo com laudo pericial dos investidores apresentando provas de que Israel e Vanessa Freitas constaram no quadro de diretores da Pharmascience e que inclusive assinavam com esse título em papéis timbrados da empresa.