Com potencial de gerar um volumoso lucro sem que isso represente um custo também maior, as startups vão, ao longo dos anos, ganhando espaço no meio empresarial e nas salas das universidades cearenses, mas há um caminho importante a ser percorrido até que o Estado possa se destacar ante as outras unidades da Federação e até que o Brasil consiga alcançar nações desenvolvidas nesta seara.
E essa jornada passa por obstáculos como a falta de infraestrutura, dificuldade de acesso ao crédito e uma legislação que favorece a insegurança jurídica. A avaliação é do cearense Machidovel Trigueiro Filho, professor da Universidade Federal do Ceará e da Florida International University e pesquisador em Stanford na área de Direito das Startups e Inteligência Artificial.
Em entrevista ao Diário do Nordeste, ele fala sobre o cenário pós-crise do coronavírus e como as startups estarão inseridas nele, além de como o Ceará e o Brasil podem se espelhar em outros países para a criação de uma ambiência de negócios mais favorável.
Na sua avaliação, como o Ceará está posicionado em inovação ante os outros estados do País?
O Ceará recentemente começou a trabalhar o hub de tecnologia e as pessoas aqui têm falado muito em ecossistemas de inovação e ecossistemas de startup. Aí no Ceará a gente tem o Banco do Nordeste fazendo editais para atrair startups, a própria UFC tem isso também. Só que o que peca, e eu falo isso no Ceará e no Brasil, é a infraestrutura.
Veja se as escolas públicas estão tendo aulas como os meus filhos de escola privada estão tendo. Quer dizer: não há ainda a democratização da internet. Nós estamos no D-1, estamos no estágio atrás, isso é um fator impeditivo, ao meu sentir, de uma evolução para a inovação.
Então é algo muito bonito ir lá e dizer: 'olha, nós temos um hub de tecnologia que entra pelo cabo marinho'. Mas está chegando na ponta? Está chegando ao interior do Ceará? As pessoas têm acesso, há uma democratização, uma mudança cultural?
É um passo mínimo ainda para que alguém que possui um espírito empreendedor, uma inteligência diferenciada, que às vezes está no interior do Estado, possa ter acesso ao mundo. Mas ele está na roça, precisa desse acesso. É democratizar oportunidades.
A gente, hoje, está atrás de Recife (Pernambuco). A inovação é mais forte, claro, em São Paulo, e Florianópolis (Santa Catarina) conta com um centro muito forte em inovação. Essa turma partiu na frente, mas isso para mim não importa. A gente pode alcançá-los.
Quais segmentos se destacam quando a gente fala em startups no Ceará?
Claramente o Ceará cresceu nas Edtechs, que são as startups de Educação. Tem a Arco, que é hoje um unicórnio, abriu capital, e atrás vem uma startup que eu chamo de raiz, que começou de baixo e escalou, que é a Agenda Edu. Então, no Ceará, eu vejo as Edtechs como algo que cresceu bastante, e a gente pode buscar as raízes disso talvez nessa história de que o Estado é campeão nos vestibulares e tal, então temos, como destaque, as Edtechs e aí eu não vejo muita coisa além disso.
O Estado tem uma vocação turística forte, apesar de o setor ter sido muito penalizado pela pandemia. Há espaço para as startups voltadas para essas nossas vocações locais?
O turismo sempre foi uma saída para o nosso Estado. Eu nunca tive essa dúvida. Todas as startups de turismo já chegaram aqui com as plataformas próprias, como AirBnb, Uber e a 99. Não há uma startup cearense, mas eu acho que poderia ter. Acho que é possível, sim, e quem partir no Ceará com algo pensado para o turismo interno - porque o momento é do turismo interno, já que o turismo internacional vai dar uma arrefecida considerável - vai sair na frente.
Acho também que há um espaço muito bom para startups voltadas para o mercado de capitais. No Brasil, com 200 milhões de habitantes, você tinha, até fim de 2019, entre 600 mil e 700 mil pessoas aplicando na Bolsa. Hoje temos 2,2 milhões. Com a Selic a 2,25% ao ano, o investidor sai da renda fixa e migra para onde? Para o risco. Há um gap de crescimento grande na Bolsa, não é agora, porque nós estamos numa pandemia, mas eu diria que no médio prazo. Outro mercado que tem espaço aí é o de educação financeira. Então além do turismo, você tem esses outros caminhos fortes.
Quais iniciativas você visualiza aqui no Estado de favorecimento das startups, iniciativas voltadas para isso e o que você acha que precisa melhorar? Você até já falou sobre a questão da infraestrutura...
Aí eu não consigo ver o Ceará sozinho, mas dentro do contexto do Brasil. As pequenas startups foram muito afetadas com a crise e aí qual é o grande problema? Como o Ceará pode ajudar? Mais do que esse modismo de abrir ecossistema de startup, o que pode ajudar efetivamente? Crédito! As empresas não têm cadastro. Qual é o grande problema do Brasil hoje? O engessamento do crédito.
Os bancos não liberam. Não chega na ponta! O crédito fica ali só na vontade. Eles (governo) são superbem intencionados, são bons, mas o crédito não chega na ponta porque as empresas não têm cadastro. Você tem mais de 60% da população negativada no Serasa e aí os bancos barram.
Isso complica, porque às vezes a empresa tem todo um negócio para a frente e precisa de recursos, então o estado poderia buscar alguma forma de fundos ou de incentivar um venture capital (capital de risco). É preciso alguma forma de incentivo, porque sem dinheiro, boas ideias não vão para frente. E de boas ideias o mundo está cheio.
A parte de vendas digitais é um mercado que eu não vi aqui no Ceará alguém fazer isso de forma profissional, que dê escalonamento. A Amazon compra um terreno e vai abrir um Centro de Distribuição. Ou seja, é o nosso dinheiro que vai para fora, porque o lucro é dela, então é fuga de capital. Se não bastasse a fuga de cérebros.
Então eu vou deixar Magazine Luíza, a Amazon, que é americana, chegarem, porque aqui ninguém faz? Será que a gente não tem essa capacidade? Os caras têm que vir até aqui para ensinar a gente sobre como se faz distribuição de produto?
Entrando um pouco mais nessa questão da pandemia, que provocou muitas mudanças de comportamento. Como isso afeta o ambiente para as startups? A gente viu, por exemplo, um crescimento absurdo no delivery. Como você vê isso?
O mercado já vinha mudando. A tendência de delivery, de compra digital já existia, só que ela vinha numa velocidade normal. Com a pandemia, houve uma aceleração dessa revolução, porque na verdade nós estamos dentro de uma revolução, como foi a revolução industrial, só que por estarmos dentro dela a gente não consegue enxergá-la.
O que é que acontece: dentro desse cenário revolucionário, houve uma aceleração pela pandemia. Com isso, as pessoas mais rapidamente mudaram valores, algumas entenderam que o menos é mais, algumas entenderam que esse espaço familiar, que comer em casa é importante, por exemplo.
Nós juntamos a isso um movimento de violência que nós temos no Ceará e não temos lá fora, então eu acho que também há um caminho para startup nisso. Não sei como, porque se eu fosse um visionário eu já teria montado a minha startup nessa área, mas acho que na área da segurança vai sair alguma coisa interessante, por instrumentos de inteligência artificial.
Então delivery, o home office, já eram quase realidade. Apenas se consolidaram. E eu vejo que isso vai refletir, principalmente, no mercado imobiliário. Por exemplo, houve um 'boom' aqui de lançamento de salas comerciais. Talvez não tenham dimensionado, feito pesquisas de mercado. As pessoas não vão mais tanto para a sala comercial ou pelo menos vão diminuir esses espaços. Eu não consigo ver mais isso nem no Ceará, nem no Brasil, nem no mundo já há muito tempo.
Se você me perguntar para onde esse consumidor vai, não é fácil responder. Mas as coisas mudaram e as empresas não vão continuar como antes, que tinha aquele consumidor de forma mais fidelizada. Essas empresas vão ter que se reinventar porque a cabeça daquele consumidor mudou. E o que eles estão pensando foi influenciado pela pandemia e pelas reflexões que eles tiveram nesse tempo. Então essa reinvenção é necessária, urgente e aliada à tecnologia, porque nós temos também, no meio de tudo isso, uma coisa chamada Inteligência Artificial e muita gente confunde, acha que é só ter tecnologia, mas não é. A Inteligência Artificial escalona mais fácil, é algo diferente, então as empresas que não buscarem instrumentos de tecnologia e algumas de Inteligência Artificial, elas vão desaparecer.
E aí o setor de saúde é outro setor que eu vejo que vai mudar completamente. A forma de consulta, de exame, tudo vai mudar muito com a inteligência artificial. As máquinas vão examinar a gente. Aí vem aquela questão: vai desaparecer o médico, o professor? Não, mas vai mudar a forma de ele ensinar. Vai mudar a forma de consultar. E ele vai ter que se adaptar ou então vai ficar para trás.
E aí tem espaço para as startups crescerem e aparecerem, é isso?
O que existe no Brasil são setores oligopolizados, claramente. Você vai na saúde, é um oligopólio. Você vai no banco, só são quatro ou cinco bancos privados. Me diga um setor que eu vou te dizer que é um setor oligopolizado. Então todos esses setores estão oligopolizados por empresas. Essas empresas partiram já na frente em tecnologia, elas já estão com Inteligência Artificial agregada aos produtos delas e o espaço que vai sobrar são as empresas que vão furar esse bloqueio, buscando um novo produto e possivelmente sendo vendidas para esses grandes grupos.
Além dessa questão da mudança de comportamento das pessoas provocada pela pandemia, a gente percebe que muita gente qualificada acabou ficando sem emprego por conta dessa severa crise que tá afetando as empresas. Como isso deve mudar o cenário das startups no Brasil e no mundo?
Eu costumo dizer que o mercado vai se ajustar. Um ponto realmente preocupante é que o desemprego aumentou e vai aumentar.
Como as startups entram aí? Só sobreviverão as startups que vão conseguir se encaixar nesses setores oligopolizados, na minha visão. E não são muitas. É muito fácil chegar para o desempregado que passou a vida trabalhando e dizer 'vá lá, pense em uma coisa nova!'. Não é assim. Eu sou egresso do Banco do Brasil, saí de lá no Plano de Desligamento Voluntário (PDV) em 2016, mas sempre fui um estudioso de mercado. O PDV estimulou as pessoas a saírem com essa ideia de montar o próprio negócio.
Acho que 70% a 80% dessas pessoas que saíram nos PDVs perderam dinheiro em menos de dois anos. Quanto às startups, 90% fecham no segundo ano. É o cara que montou o joguinho, que pensou numa pequena entrega. Ela fecha porque não consegue crédito, não consegue o cliente. Falta capital. Vou até chamar a atenção para o seguinte ponto: cuidado para não abrir irresponsavelmente startups, porque não é assim.
A startup é uma empresa igual a outra. É uma pequena empresa, então eu só vejo uma saída para isso: oxigenação da economia. O governo vai ter que jogar dinheiro na economia, vai ter que abrir as porteiras do crédito.
É complicado, porque a concorrência está cada vez mais feroz. Mas eu ainda acredito que o Brasil é um País de grandes oportunidades. Não é fácil, o momento é difícil.
Quais as dificuldades as startups enfrentam no Brasil em termos de legislação? O que a gente tem a aprender nesses termos para proporcionar um ambiente mais favorável?
Aí as raízes são mais profundas e eu posso falar isso de uma forma comparativa com os Estados Unidos. Nós temos um modelo legal aqui no Brasil, que é o Direito Civil, baseado em leis e cujos processos são muito longos. Eu estou falando do ponto de vista do investidor. Porque as empresas americanas não investem aqui? Porque a legislação lá é completamente diferente da legislação daqui.
Primeiro: o custo do processo nos Estados Unidos é muito alto. Então o fato de o custo ser alto estimula os acordos prévios. Antes mesmo de se iniciar o processo, você tem ali um caminho de acordo, é feito exatamente porque a pessoa já faz a conta: "se eu entrar com o processo e eu perder tem os custos com advogado". No Brasil, a gente poderia incentivar acordos - e aí há um espaço imenso para startups também, startups de acordos extrajudiciais, evitando a ida ao Judiciário. Esse processo pode durar 20, 30 anos? a pessoa morre e o processo ainda está lá, porque no Brasil há muitos recursos.
Então o que eu quero dizer: nos Estados Unidos, essas situações são resolvidas mais rapidamente e há uma previsibilidade das decisões. Quando o investidor entra no negócio, ele sabe os resultados do que vai fazer, porque há uma previsibilidade do resultado jurídico. No Brasil, não. No Brasil, um tribunal decide de um jeito, outro de outro. Há uma imprevisibilidade e toda imprevisibilidade gera insegurança para o investidor.
Além disso, o americano não tem paciência para esperar 20, 30 anos. Os americanos são práticos. O tempo de duração dos processos são menores, e os EUA que têm muito mais empresas que nós, possuem uma população maior, milhões de negócios todos os dias e um Judiciário muito menor do que o brasileiro. Aqui tudo é judicializado, demora-se muito, é imprevisível o resultado, então o investidor não vem.
Então tudo isso dificulta a vinda do investidor para cá e eles já sabem disso. Quando esse investidor me contrata para estudar a situação, ele pergunta: qual é o melhor caminho, como posso diminuir a imprevisibilidade? As perguntas são sempre as mesmas. No Brasil, a gente possui uma legislação começando no investidor-anjo.
O que temos de melhor aqui talvez seja o investidor-anjo, porque protege ele da questão trabalhista. É ridículo esse fato de a pessoa entrar numa empresa para investir e ter responsabilidade trabalhista. Ele é investidor-anjo, não tem que ser responsabilizado.
É como comprar uma ação, ele é um sócio anônimo, quase anônimo, ele entra ali para oxigenar o negócio, então pode ser responsabilizado por má gestão. Não pode ser responsável trabalhista, porque não é um sócio limitado. Isso tá começando a no Brasil e já existe lá fora.
Quem quer investir em um país de imprevisibilidade das decisões, imprevisibilidade do tempo dos processos? Então esse é um gargalo que tem que ser resolvido. Nossa legislação é muito iniciante.
Fique à vontade para acrescentar mais sobre o que você pensa em relação ao futuro desses negócios.
Hoje, alguém que vai abrir um negócio, uma startup, uma pequena empresa, que não precisa necessariamente ser uma startup, tem que observar que o mercado é mundial. Quando ele pensar no negócio dela, ele tem que pensar num negócio escalável.
Ela deve observar que o mundo hoje está conectado. O que eu também digo é: leia e estude bastante o seu mercado antes de se aventurar, digo principalmente para essa turma que está desempregada e vai empreender. Não entre no primeiro negócio, não entre no primeiro convite de parceria. Leia, estude, faça pesquisa de mercado. Hoje, para qualquer mercado no qual você quer entrar, tem conteúdo sobre na internet. E se cerque de pessoas boas, pessoas normalmente melhores que você. Esse é o ponto.