É possível a indústria de energia 'estocar sol e vento' no Ceará? Entenda como funciona

Antes cercado de polêmicas, armazenamento de eletricidade no Estado pode virar realidade

Em setembro de 2015, a então presidente Dilma Rousseff virou piada ao afirmar que era possível "estocar vento" para aproveitá-lo posteriormente na geração de eletricidade em discurso realizado na Organização das Nações Unidas (ONU). Quase nove anos depois, a afirmação feita pela ex-chefe do Executivo nacional volta à tona em discussões para regulamentação do setor de armazenamento de energia.

Atualmente, a consideração feita por especialistas do setor de energias renováveis é de que Dilma Rousseff "estava certa, foram só as palavras que não estavam tão claras, mas estocar o sol e o vento é exatamente o que uma bateria faz", como explica Marília Rabassa, coordenadora do grupo de trabalho (GT) de hidrogênio verde (H₂V) da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar).

"O armazenamento de energia tem um super potencial para o Brasil. Hoje a gente está no processo de regulamentação, o armazenamento está na fila para entrar no leilão de reserva de capacidade, que vai ser muito importante porque a gente não vai precisar contratar reserva de capacidade em termelétrica e sim de baterias. Isso é melhor para o sistema elétrico e para as emissões de CO₂", expõe.

"Existe um processo para incluir esse armazenamento no próximo leilão, provavelmente vai ficar para o ano que vem, e em paralelo a gente está auxiliando junto com as outras associações setoriais a regulamentação do armazenamento de energia no Brasil para que as regras do jogo estejam claras e essa tecnologia possa ser implementada com segurança pelos investidores", completa Marília Rabassa.

Afinal, como é o armazenamento de energia atualmente no Brasil?

Em termos práticos, "estocar" vento e sol é atualmente "impossível", como pondera Raphael Amaral, professor de Engenharia Elétrica da Universidade Federal do Ceará (UFC). Segundo ele, toda a eletricidade produzida hoje em dia é imediatamente jogada na rede.

"A eletricidade, na forma de eletricidade, é impossível de ser armazenada, da mesma forma o sol e o vento. Se gerou eletricidade, tem que ser consumido instantaneamente na forma de eletricidade. O que a gente consegue armazenar é outra forma de energia, como combustíveis, gás natural, água nas hidrelétricas, hidrogênio em tanques de armazenamento para depois se gerar eletricidade", pontua.

Assim como destacado pela ex-presidente da República, Raphael Amaral observa que as hidrelétricas atualmente são a principal forma de armazenamento de energia no Brasil, uma vez que a estocagem de água em reservatórios permite que o líquido seja posteriormente aproveitado para gerar eletricidade.

Acontece que, por se tratar de uma fonte renovável que depende do clima e do tempo, as hidrelétricas ficam suscetíveis às ações da natureza. Isso implica em quantidade variável de água disponível, impactando no preço da conta de energia, seja pelo acionamento das bandeiras tarifárias, mais caras conforme o nível dos reservatórios vai baixando, ou em reajustes.

"A água acumulada nos reservatórios é usada para gerar eletricidade, e os combustíveis das térmicas também. Entretanto, o país tem uma forte dependência do clima. Cerca de 60% da energia gerada no Brasil é por meio de hidrelétricas, e se temos uma seca e os níveis dos reservatórios caem, temos que partir para as usinas térmicas, que é uma eletricidade mais cara. Por isso que muitas vezes a gente sente no bolso. Outras formas de energia, como eólica e o sol, a gente ainda não consegue", comenta.

Dados de agosto de 2024 do Sistema de Informações de Geração (Siga) da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) apontam que o Brasil superou os 200 gigawatts (GW) de potência total instalada na geração centralizada, isto é, aquela que, em suma, é produzida e disponibilizada no Sistema Interligado Nacional (SIN).

  1. Usinas hidrelétricas: responsáveis por 53,7% da geração de energia do Brasil;
  2. Usinas térmicas (termelétricas + nucleares): responsáveis por 23,5% da geração de energia do Brasil;
  3. Usinas eólicas: responsáveis por 15,4% da geração de energia do Brasil;
  4. Usinas fotovoltaicas: responsáveis por 7,4% da geração de energia do Brasil. 

O que se propõe com "estocar sol e vento"?

A larga vantagem das hidrelétricas perante demais formas de geração de energia (termelétricas incluem tanto combustíveis fósseis quanto queima de biomassa, material biodegradável) põe essa modalidade em vantagem, mas o crescimento dos setores eólico e fotovoltaico faz despontar a discussão para novas formas de armazenamento.

Segundo Ítalo Freitas, vice-presidente de comercialização e soluções em energia da Eletrobras, o armazenamento natural de energia no Brasil é em forma de hidrelétricas, mas outros tipos de estocagem começam a surgir e gerar interesse do mercado.

"Tecnicamente o armazenamento tem várias formas, como o químico e o potencial, que são as hidrelétricas. O eletroquímico, que são as baterias, ainda está em fase de desenvolvimento. O custo ainda é um grande impeditivo para isso. Acho que o regulador tem que ver quando é a virada do momento em que os armazenamentos das hidrelétricas não suportam mais a entrada de muita intermitência com a eólica e solar. Tem que ver o que é mais competitivo para não perder a competitividade perante outros países", argumenta.

O armazenamento eletroquímico é o que se propõe com a estocagem de energia fotovoltaica e eólica. Como a dependência são de duas fontes climáticas (luz solar e ventos), elas são intermitentes ao longo do dia: a primeira tem o pico de geração pela manhã, enquanto a segunda, sobretudo no Nordeste, alcança maior produção à noite.

Com uma produção acima da necessidade para o sistema ou enquanto o Sol ainda brilha ou enquanto há ventos abundantes, a proposta é armazenar o excedente da geração centralizada, como já acontece com a geração distribuída, e jogar na rede quando houver aumento do consumo, equilibrando a oferta e a demanda.

Marília Rabassa defende que, dessa forma, o SIN conseguiria corrigir distorções relacionadas a interrupções no fornecimento de energia. A coordenadora do GT de H₂V da Absolar afirma que as usinas são prejudicadas "entre 10% até 50%" com cortes causados pelo não armazenamento da eletricidade produzida.

"Essa seria uma energia que seria armazenada e injetada no sistema quando o consumo fosse necessário. Diria que o mercado vê isso de forma muito positiva a tecnologia de armazenamento, complementando todas as suas funcionalidades de geração. A energia renovável é extremamente complementar a de armazenamento. Quanto mais rápido o desenvolvimento, mais vai beneficiar o setor", diz.

Regulamentação pendente

No que diz respeito à geração centralizada, o que é produzido hoje, seja por usinas hidrelétricas, termelétricas, eólicas e fotovoltaicas, em suma, é jogado na rede imediatamente após ser gerado no Brasil. Especificamente no caso da energia oriunda do Sol e dos ventos, o que se propõe é maximizar o aproveitamento da produção.

Acontece que atualmente o armazenamento de eletricidade na geração centralizada ainda não está regulamentado no País. Como explicado por Marília Rabassa, a expectativa é incluí-lo no próximo leilão de transmissão, previsto para 2025.

Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) 1224/2022, que visa regulamentar o armazenamento de energia no SIN. A proposta é de autoria do então deputado federal Beto Rosado (PP-RN), e agora segue para a relatoria do também parlamentar João Carlos Bacelar (PL-BA). Não há prazo para votação.

"Essas instalações de geração produzem eletricidade de acordo com a disponibilidade da radiação solar e dos ventos, independentemente da demanda. Assim, o crescimento da participação dessas fontes em nossa matriz elétrica, tendência inexorável no Brasil e em todo o mundo, impõe grande desafio à operação dos sistemas elétricos, no sentido de realizar o imprescindível casamento entre a oferta e a demanda de energia elétrica em cada instante", diz o texto do PL.

Em consideração feita para o projeto de lei, a Aneel aponta que "sistemas de armazenamento são fundamentais para a inserção em larga escala de geração renovável intermitente, o que, por sua vez, é fundamental para assegurar a expansão da matriz elétrica com menores emissões de carbono".

A proposta considera como armazenamento de energia interligado ao SIN quatro tipos principais:

  • Elétrico: engloba soluções como supercapacitores e armazenamento magnético em bobinas supercondutoras;
  • Eletroquímico: abrange, por exemplo, as baterias de lítio-íon, chumbo-ácido, sódio enxofre e de fluxo;
  • Mecânico: inclui hidrelétricas reversíveis, volantes de inércia, sistemas de ar comprimido e de ar liquefeito;
  • Químico: compreende o uso do hidrogênio e do gás natural sintético.

Custo elevado

No caso do armazenamento eletroquímico, o destaque do setor eólico e solar fica por conta dos BESS (sigla em inglês para Battery Energy Storage System, ou em tradução literal, Sistemas de Armazenamento de Energia por Baterias).

Tratam-se de grandes estruturas que são capazes de estocar a energia excedente da produção, independente da usina que produziu, para disponibilizar posteriormente para o sistema. Além da falta de regulamentação, o entrave fica no preço, ainda bastante elevado se comparado a outros modos de produção.

Como definido por Raphael Amaral, as termelétricas são acionadas no Brasil quando os reservatórios de água passam por períodos de seca, e acabam encarecendo a conta de luz. Ainda sim, queimar combustíveis, principalmente fósseis, ainda é mais barato do que utilizar BESS e demais tipos de baterias.

As térmicas tiveram que ser mais acionadas em 2021, quando tivemos seca. Temos esse problema dessa falta de armazenamento que seja suficiente para suprir o que as térmicas não conseguiriam no caso de um ano de seca. Não se utiliza baterias porque é muito caro se compararmos com armazenamento que é feito nas hidrelétricas e com as térmicas.
Raphael Amaral
Professor de Engenharia Elétrica da UFC
 

A expectativa é de que, com a regulamentação do BESS e demais modalidades de estocagem no País, despenquem os custos tributários, que atualmente ultrapassam a casa dos 50% em sistemas nacionais e os 70% no caso de estruturas importadas, de acordo com informações da Associação Brasileira de Soluções de Armazenamento de Energia (Absae).

O que diz a Aneel?

Procurada pela reportagem para entender as tratativas acerca da regulamentação do armazenamento de energia no Brasil, a Aneel explicou que o assunto avançou na agência no primeiro semestre deste ano.

O tema consta na agenda regulatória da Aneel para o biênio 2025-2026, e já vem sendo discutido há alguns anos no órgão. Após abrir uma consulta pública em 2023 para debater o assunto, a agência agora avalia os debates para "obter subsídios para o aprimoramento do Relatório de Análise de Impacto Regulatório (AIR) sobre a regulamentação para o armazenamento de energia elétrica". 

Também entra na questão do armazenamento de energia as chamadas hidrelétricas reversíveis, que bombeiam água de partes inferiores do reservatório para locais mais altos, reiniciando o ciclo de queda d'água para geração de eletricidade.

A questão hidrogênio verde

A sanção do Marco Legal do H₂V no Brasil, ocorrida no início de agosto no Pecém com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), deve aumentar exponencialmente a produção e o consumo de energia no Brasil. Há ainda a situação das eólicas offshores, que está em vias de aprovação no Senado Federal.

Estudos da Associação Brasileira da Indústria do Hidrogênio Verde (ABIHV) preveem, como esclarece Fernanda Delgado, diretora-executiva da entidade, "R$ 70 bilhões só de superávit com investimentos em hidrogênio verde. Se você extrapola isso para 2050, são R$ 7 trilhões de impacto no PIB. A cada R$ 1 investido, você tem R$ 10 de impacto. É uma indústria sofisticada, de alto valor agregado e que tem grande arrasto para o PIB".

Além dos 200 mil empregos diretos até 2050 no País somente com o H₂V, Marília Rabassa acredita que o setor de armazenamento de energia será um dos mais beneficiados no País, principalmente no Ceará, que deve retomar o protagonismo na geração de energias renováveis tanto em terra quanto em alto-mar.

O hidrogênio verde é o potencial de dobrar nossa matriz elétrica. Dentre os locais de hidrogênio verde, o Ceará é o que tem mais memorandos de entendimento, então com certeza o Estado vai virar esse jogo. Tudo bem que a gente pode consumir energia da rede, mas quanto mais próximo e menos investimento em transmissão, mais eficiente é o processo, e o Ceará ele tem potencial de energia solar e outras renováveis incrível, então com certeza o jogo vai virar.
Marília Rabassa
Coordenadora do GT de H₂V da Absolar

Já Raphael Amaral ainda enxerga como "muito inviável economicamente falando" o armazenamento de energia solar e eólica no processo de produção do H₂V pelas perdas energéticas. O professor de Engenharia Elétrica acredita que, futuramente, o setor possa ser beneficiado, com o Ceará com destaque internacional pelo alto número de projetos.

"A taxa de proporção da energia que eu gasto para gerar hidrogênio ainda é muito pequena, mais ou menos 3 para 1. Ainda se perde muita energia nesse processo. Precisa ainda de um desenvolvimento maior nessa área para que se chegue a níveis mais competitivos, onde se vale a pena realmente estar transformando essa energia do vento e do sol em hidrogênio para depois retransformá-la em energia elétrica", reflete.