Do pequeno ao grande, negócios se reinventam para superar crise

Do silêncio dos bares à solidão dos corredores de shoppings, trabalhadores repensam seus hábitos buscando fôlego durante a pandemia de Covid-19. Iniciativas incluem mudanças de perfil a uma maior presença digital

Ao encerrar as entregas da noite, antes de preparar o trabalho do dia seguinte, Danielle de Araújo pensa todo dia: "Até um mês atrás, eu trabalhava com outras seis pessoas, de quinta a domingo. Hoje, sou eu sozinha, todos os dias". O relato é de uma pequena empreendedora, mas poderia ser de qualquer um dos milhares de trabalhadores e micro empresários cearenses atingidos na crise econômica causada pelo novo coronavírus. Neste domingo (19), o decreto do Governo do Estado que determinou o fechamento de estabelecimentos comerciais considerados não essenciais completa um mês.

 

O "Boteco da Dani", como foi apelidado pelos clientes e mais tarde se tornou o nome oficial do lugar, costumava atender cerca de 100 mesas durante os três últimos dias de cada semana. Após o decreto obrigando o fechamento de todos os serviços não essenciais, nem os clientes e nem os funcionários ficaram. A empreendedora precisou reinventar-se para continuar com o negócio. Desta vez, sozinha.

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A queda de 75% no faturamento atingiu a todos bruscamente, e ela não conseguiu manter os empregados. Espetinhos, bebidas, petiscos e risadas até tarde na calçada da Rua Odete Pacheco, 87, no São Gerardo, deram espaço à espera incessante pela solicitação do próximo pedido. Feito pela internet.

Danielle reinventou-se. Hoje, vende "quentinhas" até o meio da tarde e, de 18h às 23h, é a vez dos petiscos e bebidas do cardápio, que têm mais saída quando bandas e cantores de forró e sertanejo fazem transmissões ao vivo na internet. O faturamento ainda não chegou a o patamar de antes - é um quarto do que era, na verdade -, mas o sentimento de superação é mais forte.

Shoppings virtuais

O mesmo acontece nos grandes centros de compras de Fortaleza também. "Os maiores cuidam dos menores": a hierarquia legal se traduz em atos de solidariedade dos empresários. O Shopping Iguatemi é um exemplo disso. Ao disponibilizar o serviço de entrega gratuito aos lojistas e consumidores, o empreendimento tem conseguido, aos poucos, perceber os primeiros movimentos de retomada nas vendas. "Primeiro, nós montamos uma estrutura de delivery para as lojas de alimentação e mostramos isso para os nossos clientes, através das redes sociais, assegurando sempre as medidas de segurança. Depois, nós estendemos para as lojas de outros segmentos, também importantes", conta Wellington Oliveira, superintendente do shopping.

Os shoppings RioMar Fortaleza e RioMar Kennedy agiram no mesmo sentido e criaram um hotsite para alocar as lojas em um mesmo endereço virtual. O objetivo, segundo a gerente de Marketing Michele Ribeiro, é que as pessoas tenham acesso às opções que encontram quando decidem ir aos centros de compras para comer ou comprar algum produto. "Nós funcionamos como um meio de campo entre o consumidor e os lojistas, a venda e entrega é responsabilidade deles, nós facilitamos o caminho", reitera. A plataforma atende, por enquanto, 130 lojas dos dois shoppings.

O Del Paseo também aderiu à ideia de disponibilizar uma versão virtual do shopping para os que costumavam ocupar seus corredores. "Uma das grandes vantagens de comprar diretamente na loja é o tempo de entrega do produto. Então, o consumidor tem a oportunidade de escolher na loja que ele normalmente compra, com a entrega de no máximo 24 horas", explica Eizon Said, superintendente do Shopping Del Paseo.

Tradicionais e virtuais

Atenta a esta movimentação pelos shoppings, a Federação das Câmaras dos Dirigentes Lojistas do Ceará (FCDL-CE) resolveu criar uma ferramenta para reunir e desenvolver os empresários nas novas condições de vendas impostas enquanto o decreto de isolamento social estiver vigente, e que serve até de reinvenção de tradicionais empresas cearenses.

Lançado no meio da última semana, a iniciativa ainda reúne poucos lojistas, mas, segundo acredita o presidente da FCDL, é o embrião de algo maior. "Uma plataforma online para gerir anúncio de negócios da capital e de municípios do interior que queiram ingressar no mundo virtual, por exemplo, é a principal meta agora", afirmou.

O mesmo pensaram equipes do Instituto Federal do Ceará em Aracati e Fortaleza ao desenvolveram a plataforma Fique no Lar. O site busca agregar comércios e serviços para atendimento virtual, como um grande marketplace, e, na última semana, disse ter na lista de inscritos empresas do Ceará, Bahia e Rio Grande do Norte.

"Temos mais de 4.600 acessos desde que a plataforma foi lançada. O Governo da Bahia está utilizando o Fique no Lar como uma ferramenta oficial de apoio aos comerciantes, e nos passando informações para aprimorar o sistema", destacou a professora Carina Oliveira, coordenadora do projeto Fique no Lar e docente do IFCE campus Aracati.

Formada por professores e alunos bolsistas, a plataforma foi desenvolvida em apenas três dias e já conta com versões para mobile, com aplicativos disponíveis para Android e iOS.

Gerenciando a crise

O advogado Rafael Abreu, especialista em direito empresarial, sugere que o caminho das empresas para readaptar suas práticas e sobreviver diante do novo contexto é mesmo de revisão das atividades. "Deve haver comunicação entre os setores da empresa, transparência. É necessário que reavaliem as obrigações mensais com o que vão receber, essa é a primeira orientação", instrui.

O segundo passo é usar, quando possível, as medidas disponibilizadas pelo Governo Federal para amparar as empresas. Ele relaciona essas medidas com as ações adotadas pelo Ministério da Saúde: "Assim como existe a corrida pelo achatamento da curva de contaminação na área da saúde, a economia propõe medidas priorizando achatar a curva do desemprego", compara Rafael.

Em último caso, empresas que não conseguem ter acesso aos benefícios devem ter o direito de se restabelecer amparadas pela justiça. "Esse é o momento de solicitar a recuperação judicial, uma espécie de blindagem patrimonial, inicialmente por 180 dias, para que as empresas consigam honrar seus compromissos sem ter bens ameaçados"

Os olhos otimistas para a economia cearense eram realidade até pouco tempo atrás. Segundo Christian Avesque, especialista em consumo e varejo, antes da pandemia era esperado um crescimento em torno de 4% a 4,5% ao fim do ano. Mas com a nova realidade, a expectativa é de uma queda de 6% do PIB em 2020, no setor varejista.

A adaptação a modelos de vendas alternativos é fator determinante para a saúde econômica dos negócios. "O varejo que fizer parte do ambiente online e off-line, fizer venda com entrega em curto prazo, construir um marketplace com parceiros, que investir pesado no universo digital, vai ter uma chance muito maior de sair dessa crise. Essa é a única solução. Quem não estiver trabalhando nesse formato vai sofrer bastante", observa.