De pescadores a oficiais náuticos: como é a rotina de profissionais que atuam no mar

Reportagem da série 'Economia do Mar' mostra rotina de profissionais que trabalham no meio marítimo


Já imaginou ter como local de trabalho um espaço infinito como o mar? Essa é a rotina de quem trabalha com o comércio marítimo, o transporte, a pesca e diversas outras carreiras que atuam nos mares. Esses profissionais enfrentam desafios físicos e psicológicos para executar suas funções. 

A quinta reportagem da série “Economia do Mar” aborda os empregos que percorrem o mar e as rotinas desses profissionais. O especial integra o projeto Praia é Vida, promovido pelo Sistema Verdes Mares com foco na valorização e na sustentabilidade desse meio indispensável para múltiplas formas de vida.

Um dos ramos de maior crescimento é o do mercado marítimo, que teve a importância consolidada durante a pandemia. Entre os responsáveis pelo transporte nos oceanos, os que são mais chamam atenção são os oficiais náuticos, maquinistas e os práticos - responsáveis por atracar as embarcações. Mas por trás da navegação, há diversos profissionais responsáveis pela logística nos portos. 

Uma das funções dos 'bastidores' é a de operador portuário, cargo que Fausto Silva, de 36 anos, ocupa em uma empresa que atua no Porto do Pecém, na Grande Fortaleza. Da terra, ele é responsável por garantir que cargas saíam e cheguem no Brasil sem problemas na fiscalização. Para isso, precisa entender as normativas de diferentes países e lidar com diversos fuso-horários.

“Você não tem uma rotina, você pode estar no sábado à noite na sua casa e apareceu um armador mandando um e-mail para você dizendo assim 'vai ter um navio para você chegando daqui a cinco seis dias, tá?'. Então você vai entrar em contato com o comandante do navio e começar os trâmites, aí você vai fazer toda a parte comercial, de tratativa, de negociação de preços”, aponta. 

Natural de São Paulo, Fausto encontrou no Ceará uma oportunidade para expandir sua atuação no ramo marítimo. “Você passa pela praia, você vê aquela pá eólica girando e é uma sensação gratificante que você fala assim 'poxa, eu ajudei aquilo ali a acontecer'. É um trabalho diferenciado, que você tem uma visão do litoral cearense. É lindo, maravilhoso”.

SETOR AINDA É PREDOMINANTEMENTE MASCULINO

Apesar da rotina instável e dos locais de trabalho insólitos, o mercado de transporte marítimo e de cruzeiros é bastante atrativo pelas altas remunerações. A consultora de carreira e desenvolvimento humano, Bernadete Pupo, aponta que o pagamento em moeda estrangeira e a disponibilidade de alimentação e acomodação também são diferenciais. 

As médias salariais dos cargos de oficial de máquinas e comandante, por exemplo, superam R$ 25 mil, segundo o Guia Brasileiro de Ocupações, iniciativa da Organização Internacional do Trabalho.

Em contrapartida, os profissionais do mercado marítimo precisam de alta qualificação, com treinamentos de segurança e operação específicos. Para se tornar oficial náutico, por exemplo, é necessário formação em Ciências Náuticas pela Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante (Efomm), de nível militar.

“Além de todos esses requisitos, considerando os salários diferenciados e os benefícios embutidos, não se deve desconsiderar os desafios propostos por estes trabalhos, pois os profissionais enfrentam dias de confinamento com restrições de lazer e isolamento social e da família.

A carga horária em mar é bem puxada, embora se tenha o mesmo período para descanso em terra firme”, aponta Bernadete.

A consultora ressalta que o mercado de trabalho naval é vasto, com muitas empresas à procura de talentos, mas ainda predominantemente masculino. Essa é uma realidade enfrentada por Thays Vale, segunda oficial de máquinas de uma empresa petroleira subsidiária da Petrobras. Ela revela que lidar com comentários machistas é um receio que enfrenta no início do ciclo de embarcação, que dura três meses.

“É como se eu tivesse que ter dez vezes mais conhecimento que qualquer outro homem para eu poder ser comparada a um profissional na mesma função”, explica. 

Ela aponta que, além das capacitações técnicas, sua função carrega grande responsabilidade ambiental, já que um pequeno acidente no transporte de minerais pode causar um dano gigantesco aos oceanos. Por esse motivo, todas as operações são bastante inspecionadas.

“Eu tenho muito orgulho do que eu faço porque eu sei que é uma atividade muio importante. Mas também é de uma responsabilidade enorme porque são cargas muito importantes e caras. A gente tem muita regulamentação, é uma preocupação enorme porque, se cai uma gota do que a gente carrega, pode afetar muita coisa”, afirma.

Trabalhar embarcada transforma a maneira como Thays enxerga o mar, já que o navio passa a ser uma casa. Ela está há cinco anos na função, alternando entre três meses embarcada e três meses em terra. Com a missão de transportar combustíveis para diversos países, como Singapura e Estados Unidos, a oficial não pôde parar de trabalhar nem durante a pandemia de Covid-19. 

"Além do período de embarque, a gente ficava um período confinado no hotel. A gente entende o motivo, mas não era uma situação fácil para quem viveu. Fora as questões emocionais de ter a família longe. Meu irmão pegou covid quando eu tava embarcada, então foi a situação mais difícil que eu passei".

RIQUEZA A SER EXPLORADA

Para além dos navios petroleiros com tecnologia avançada, há quem tira o sustento do mar com apenas redes e varas. A atividade pesqueira é uma das mais tradicionais e reúne de pequenos produtores a grande empresas. O Ceará é líder na exportação de pescados do Brasil, com 57 mil empregos gerados pelo setor, segundo o governo estadual.

Um dos pequenos empreendedores do setor é Wesley Amaral, da associação de pescadores do Bairro Serviluz. O pescador segue a tradição da família no setor e cresceu já imerso no ambiente da praia. “Quando eu estava na barriga da minha mãe, meu pai já me levava para pescar com minha mãe e minha avó”, conta.

Diariamente, Wesley adentra o mar em sua jangada para garantir o pescado. Para isso, precisa lidar com o desgaste físico e a imprevisibilidade das marés.

“Acordo 5h da manhã para ir para o mar. Às vezes o vento está bom. Quando não, é só ficar na praia mesmo, limpar a jangada”, aponta.  Além de conseguir sustentar a família, o pescador se encontrou no estilo de vida. “É o que eu amo, faço por amor. E ainda é meu trabalho, onde tiro minha renda para arcar com tudo”, expressa. 

Neto em pescadores do Mucuripe, Jailton Nogueira também 'cresceu na praia' e decidiu que o mar seria seu foco de estudos. Formado em oceanografia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), ele coordena um laboratório técnico no Instituto de Ciências do Mar (Labomar). O principal objetivo do setor é a coleta de dados científicos do oceano, no processo de compreensão dos processos ambiental. 

A oceanografia é uma ciência ampla, que estuda entre outros pontos a composição da água do mar, a geologia do fundo oceânico, a física das correntes oceânicas, a química da água do mar, a biologia marinha e a ecologia dos ecossistemas marinhos. Jailton explica que os oceanógrafos podem atuar nas praias, como ele, em mangues, rios e até embarcados. 

“Um oceanógrafo precisa coletar dados do ambiente para entender os processos que ocorrem nos oceanos, como a circulação das correntes, o comportamento das ondas, a formação de ilhas e recifes de coral, a circulação atmosférica, a vida marinha e as interações entre os seres vivos e o ambiente aquático. É uma profissão desafiadora e estimulante”, aponta. 

Ele aponta que a maior dificuldade do ramo é conseguir investimentos, necessários pela demanda constante de atualização de amostras e pesquisas. "É uma ciência cara, que necessita de equipamentos caros, barcos e dinheiro para pesquisas. Hoje vivemos um momento de muito alerta acerca das mudanças climáticas, e com isso mais investimentos podem aumentar a demanda e oportunidades para os oceanógrafos", projeta. 

PROFISSIONAIS DE MERGULHO

Além do esforço físico, os mergulhadores precisam se manter calmos para lidar com situações diversas no fundo do mar. Quando a missão é resgatar alguém, a pressão psicológica é redobrada, conforme explica o subtenente Daniel dos Santos Bezerra, comandante da companhia de mergulho do Corpo de Bombeiros do Ceará.

Pelo caráter técnico e necessidade de cautela, o curso da companhia é um dos mais exigentes da corporação, com taxa de aprovação de cerca de 40% segundo o subtenente. "A gente consegue pegar os principais homens e transformá-los em pessoas mais tranquilas, que a gente efetuar a missão independente do local. É o mesmo padrão para qualquer tipo de serviço", explica.

As operações variam conforme as condições de visibilidade e navegação e, devido à correnteza, são mais complexas no mar. Ele aponta que, apesar da maioria dos resgates em mar resultar na recuperação de corpos, é reconfortante proporcionar um enterro digno para a família.

O quartel da companhia está situado em um ponto estratégico próximo à Praia da Leste-Oeste, a poucos minutos dos principais pontos de ocorrência.

O comandante, há quase trinta anos na coorporação, aponta que os bombeiros contam cada vez mais com a tecnologia para apoio das operações, como máscaras aquáticas com microfone para comunicação com a equipe. A atuação dos bombeiros também depende diretamente da saúde dos agentes. "Envolve vários graus de saúde. Você não pode mergulhar com sinusite, com problema no ouvido, com gripe. A saúde do mergulhador sempre tem que estar totalmente inteira, o corpo tem que trabalhar sempre", aponta.

Para o cabo Emanuel Almeida Lima, que também integra a companhia de mergulho, a exigência é ainda maior, já que ele trabalha com mergulho recreativo nas horas livres. Ele afirma que o Ceará tem uma vida marinha abundante e lamenta que o Estado ainda não está na rota nacional dos recursos recreativos.

"Eu já entrei para o Corpo de Bombeiros para trabalhar como guarda-vida e aí no curso de mergulho consegui a diversidade, o potencial e a maravilha que é o mergulho aqui no Estado", conta. 

Gosto sempre de estar debaixo d'água, tanto faz sendo nas águas mais turvas nas proximidades do aterro, como mar adentro. Fazer parte da cultura do mergulho é saber que você tem uma missão diferenciada, que também exige que você esteja em constante aprendizado, sempre procurando se atualizar, aprender. Porque o conhecimento é perecível
Cabo Emanuel Almeida Lima
Agente da Companhia de Mergulho do Corpo de Bombeiros do Ceará

MAR TAMBÉM PODE SER CASA

Passar aniversários, natais e viradas de ano longe de família e amigos, perder eventos importantes e ter a vida praticamente dividida em duas: essa é a realidade de quem trabalha embarcado. A oficial náutica e advogada Janna Braga sabe bem qual a sensação.

Durante o período de 'praticagem', a fase de estágio da formação, ela chegou a passar 14 meses a bordo do navio, saindo de Manaus até o Uruguai, passando por todos os portos do Brasil. 

Já como oficial de uma empresa transportadora, entrou no ciclo de 56 dias embarcada e 56 dias em terra. Janna aponta que pela falta de internet e poucas opções de lazer, o período nos navios é de trabalho intenso, o que acaba tendo reflexos na vida social.

“Quando está embarcado, todo dia é segunda-feira. Quando está em casa, todo dia é sábado. Todo dia você é livre para viajar, fazer o que quiser. Mas isso de estar muito tempo longe também afasta você dos amigos, da família. Porque quem não embarca não entende que você só está metade do ano em casa, vivendo alguma coisa. Aí aquilo começa a te distanciar e você cria mais vínculos com quem é da profissão”, explica. 

Pela dificuldade de conciliar 'os dois mundos', Janna decidiu abdicar do trabalho como oficial para se dedicar à maternidade. A decisão ocorreu após saber de uma tragédia familiar durante o período no navio. 

“Quando eu estava embarcada, eu não era próxima do meu pai, mas ele faleceu. E o navio não tem sinal, não tem telefone quando você não está perto da costa. E eu só fiquei sabendo da morte dele três dias depois. E aquilo me fez repensar muita coisa, porque sempre que acontecesse uma coisa muita séria, eu não ia ser avisada. Isso deixa você repensando a vida”, lembra.

Sem se desligar totalmente do meio, Janna decidiu se dedicar à advocacia para marítimos. A experiência prévia, com entendimento do regime de trabalho diferenciado, facilita o atendimento aos colegas de profissão. Com saudade, a profissional relembra o momento mais especial embarcada.

"A primeira vez que eu entrei, que vi o tamanho do navio, e tirei meu primeiro quarto de serviço sozinha. Eu tinha 22 anos, era a mais nova do navio e a única mulher. O navio de 320 metros, acordar de madrugada e ter você e só o mar. Aquilo trazia uma sensação de poder e paixão pela profissão", relembra.