O sonho de férias em local paradisíaco, com hospedagem de luxo garantida para a família, está longe de se tornar realidade para a corretora de seguros Andreza Moreira, de 30 anos. Ela é uma das milhares de pessoas que compraram fração de uma das 583 unidades do Hard Rock Hotel (HRH) Fortaleza, localizado na Praia de Lagoinha, no município de Paraipaba, a 108 quilômetros (km) da Capital.
Andreza conta que já tinha interesse em comprar um imóvel nessa modalidade de multipropriedade, quando foi abordada por uma equipe de vendas em um shopping de Fortaleza. A corretora ainda acusa a empresa de ter aplicado golpe nela.
“Como o Hard Rock carrega uma marca internacional forte, nunca imaginei que estaria caindo em um golpe”.
O empreendimento no litoral oeste do Ceará foi pensando na modalidade de multipropriedade, regime em que o comprador vira dono de uma pequena fração do imóvel. Isso garantia o direito vitalício a uso do espaço por duas semanas ao ano, sem precisar pagar estada. O proprietário também teria a opção de alugar a unidade durante o seu período.
A compradora diz ter pago R$ 10 mil no ato da compra e ainda ter parcelado um saldo. Ao todo, o prejuízo seria de R$ 25 mil.
“Me dei conta (que tinha algo errado) quando o prazo do meu contrato passou e nada de entregarem o Habite-se. Fui ao empreendimento pessoalmente e vi que onde seria minha unidade estava no chão, foi nesse momento que cessei o pagamento”.
O Habite-se ou Alvará de Habitação é um documento que atesta que um imóvel foi construído conforme normas e regulamentações do município. O Habite-se é indispensável para que o imóvel seja habitado legalmente, com serviços de água, energia e saneamento básico.
Ela afirma que depois disso, começou a ser cobrada “incansavelmente”. “Então, eu sempre repetia: me entregue o Habite-se que quito essa unidade. Porém, eles (a empresa) sempre tentavam me convencer que eu estava louca. Eles fazem uma lavagem cerebral”, desabafa.
'Exaustivo pedir estorno'
Nas tratativas com a empresa que vendeu a fração, a corretora de seguros recorda que teve “vários picos de pressão alta”. “Era exaustivo pedir o estorno. Era sempre a mesma conversa que iam entregar. Até que vi que não teria jeito.”
A mulher diz que a única alternativa que encontrou para acabar com o seu problema e reaver o seu investimento, foi entrar na justiça, contratando um advogado especializado em Direito Imobiliário.
“Na justiça, já tivemos uma primeira liminar positiva para devolução do que paguei e danos morais, com três meses de processo”, relata.
Para outros compradores, Andreza aconselha que “busquem um bom advogado especialista, o tempo perdido e dor de cabeça é difícil reparar. Porém, não aceitem menos do que foi desembolsado”, reforçou.
Consumidor comprou imóvel há 6 anos
Um professor de 54 anos, que pediu para não ser identificado por estar processando o empreendimento e ter medo de ser prejudicado, conta que foi um dos primeiros a comprar cota no HRH Fortaleza, ainda quando a operação de vendas ocorria na Praia do Futuro.
“Comprei na primeira oferta que eles fizeram, há 6 anos. Então, parcelei em 72 vezes e a última parcela vencerá agora, em novembro de 2024. Quando essa entrar, ele estará totalmente pago”, diz o professor, lembrando que fez a compra da fração do imóvel com acomodação de até 12 pessoas, em seu cartão de crédito.
Ao todo foram 72 prestações de R$ 1 mil, ou seja, um total de R$ 72 mil.
O consumidor lembra que veio a pandemia e a entrega que seria em 2020 foi postergada ano após ano. “A gente tem um enorme prejuízo aí, todo mês eu pago fielmente, sem nunca ter um atraso, porém não recebi nada até agora”.
Ele conta que foi até Lagoinha algumas vezes, para ver a obra. Além disso, o professor afirma que a empresa sempre promete uma semana em algum resort da rede para amenizar os atrasos na entrega do imóvel.
“Eles fazem aquela propaganda, até para a gente comprar mais unidades, uma vez quase que compro também uma unidade de Jericoacoara. Nos atrasos, eles sempre prometem uma semana em algum resort, ou abater o juro de obra. É sempre essas coisinhas que eles dão se você aceitar. De forma muito infantil, caí na primeira proposta deles, quando atrasaram pela primeira vez, porque pensei que ia ser só aquele atraso e pronto”, comenta.
Professor deixa de receber R$ 30 mil por ano com aluguel
Na justiça, o professor agora busca o reembolso de todo o valor pago por ele, com correção para os valores que estão sendo cobrados atualmente, além de juros, danos morais e lucros cessantes.
Esse último item é o valor que ele deixou de receber com o aluguel do período que teria direito, referente aos quatro anos que já deveria estar usufruindo do bem.
“Quando comprei, foi dito pelo vendedor, que isso era um investimento. E assim eu quis fazer, como investimento, porque na hora que eu recebesse já poderia alugar. Minhas semanas de uso são janeiro e agosto, excelentes. Eu contava em uma semana de alta temporada receber uns R$ 15 mil de aluguel. Por ano seriam R$ 30 mil, aí calcula isso pelos anos de atraso, corrigidos e com juros”, relata o comprador, afirmando ainda que um dos argumentos de venda do empreendimento era justamente ele “se pagar a partir dos aluguéis”.
Advogada defende consumidores que se sentem lesados
A advogada Mariana Coling, especializada em direito imobiliário, afirma que com a comprovação da paralisação da obra, os consumidores têm direito a rescisão indireta do contrato, indicando que a culpa da rescisão é do vendedor, em razão do atraso.
"Desse modo, aplica-se a multa contratual para a construtora além do dano moral pela expectativa criada".
Ela explica que os compradores com o contrato com prazo vencido podem entrar judicialmente pedindo liminarmente (no início do processo) a devolução de 70% do valor pago e a rescisão do contrato, sendo ao final discutidas as questões da multa contratual e do dano moral.
Já os que ainda não têm no contrato o atraso na entrega, também podem utilizar da via judicial, considerando a obra paralisada, logo, demonstrando que as intervenções e etapas previstas para a construção do resort não tiveram início.
"Caso aqueles que compraram o empreendimento, não queiram rescindir com o contrato, tem também a opção de pleitear somente a multa pelo atraso na obra", explica.
Mariana está atuando na busca por direitos de alguns consumidores que se sentiram lesados pelo Hard Rock Hotel e afirma que já recebeu, de forma liminar, a restituição de valores.
Ela ainda comenta que não houve problema com os pagamentos por parte da administradora do empreendimento e que "os julgados desse caso são todos favoráveis ao consumidor".
O que diz o Ministério Público
O Ministério Público do Estado do Ceará, por meio do Programa Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor (Decon), informa que a multa de R$ 12 milhões aplicada no início do ano à VCI - empresa responsável pela construção e comercialização do empreendimento - ainda não foi paga, uma vez que a empresa apresentou recurso.
O processo tramita na Junta Recursal do Decon (Jurdecon). “Por isso, a cobrança da multa permanece suspensa até que todos os recursos sejam julgados”.
Ainda em nota, o Decon informa que, mesmo após a decisão administrativa para aplicação da multa, o órgão continua recebendo reclamações acerca do atraso na entrega do empreendimento.
“Assim, o MP do Ceará permanece vigilante e à disposição dos cidadãos que desejem registrar reclamação nesse sentido, como forma de viabilizar possível acordo que na seara administrativa entre os consumidores lesados e a empresa”.
Caso sejam constatados fatos novos que continuem a lesar os consumidores cearenses que adquiriram lotes do empreendimento, o Decon reforça que adotará as medidas cabíveis após a finalização do julgamento de todos os recursos.
Quais seriam os números do empreendimento
Segundo fonte a par do assunto, a empresa brasileira responsável pelo empreendimento vendeu cerca de 15 mil frações do projeto de Fortaleza, o que teria resultado em mais de R$ 2 bilhões em vendas.
"A Companhia realizou uma operação com o Itaú BBA e Urca Capital, denominada FIDC RESIDENCE CLUB, que possibilita os descontos dos recebíveis e o término da obra. Ou seja, conforme report do FIDC na CVM, existem hoje mais de R$ 400 milhões de recebíveis livres para serem descontados e financiar a obra", afirma a fonte que não quis se identificar, mas enviou à reportagem parte de um informe do fundo datado de maio de 2023.
“Na teoria contábil / financeira não existe problema financeiro, mas claramente as obras não andam na velocidade desejada”, completa.
Ao assumir o empreendimento, a Residence Club teria fechado lojas e salas de venda das frações, além de fechar o restaurante Hard Rock Café, no shopping RioMar, em Fortaleza.
“Isso reduziu as vendas de R$ 50 milhões mensais para algo próximo a R$ 10 milhões. O foco é vender menos e finalizar as obras”.
“É uma decisão drástica em um mercado como Fortaleza. Encolheram a companhia e os projetos futuros, com certeza em comum acordo com os americanos (a marca Hard Rock Internacional), mas a comunicação com o mercado está falha segundo a maioria dos clientes e grupo de fornecedores”, comentou a fonte.
O que diz a Residence Club sobre a obra e os atrasos
Em nota, a nova empresa administradora da obra em Lagoinha, a Residence Club, afirma que desde que assumiu, há 9 meses, o comando da empresa, iniciou o processo de reestruturação do negócio.
“Com apoio dos investidores, nós efetuamos uma análise profunda dos projetos vigentes e traçamos um plano para os empreendimentos atuais. Para o Residence Club at the Hard Rock Hotel Fortaleza, apesar das obras não terem sido interrompidas, nós contratamos recentemente a WR Engenharia, que está formatando o seu cronograma de obras para apresentação aos nossos clientes”.
Contudo, a reportagem também questionou se há um novo prazo para o empreendimento ser entregue e se o empreendimento chegou a vender todas as cotas previstas para viabilizar a obra.
Além disso, também foi perguntado quantos contratos de aquisição firmados continuam em vigor e como a empresa avalia o processo de desgaste da marca no Ceará. Porém, não obtivemos respostas. O espaço segue aberto para mais esclarecimentos.
O que diz a Hard Rock International
A Hard Rock International reafirmou em nota à reportagem que sua atuação na propriedade da Praia de Lagoinha começará após a conclusão das obras e com foco na operação do hotel.
"A construção e comercialização do imóvel, no modelo multipropriedade, são de responsabilidade da Residence Club S/A".
Além disso, a empresa esclareceu que "nunca foi multada pelo Ministério Público do Estado do Ceará, por meio do Programa Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor (Decon). A autuação foi direcionada à VCI".