Alerta: o conteúdo desta reportagem tem descrições de cenas de agressões e pode conter gatilhos emocionais, sobretudo para pessoas que já vivenciaram um contexto de violência doméstica
Há um ano, Bárbara*, de 35 anos, estava sentada em um banco de concreto à espera de atendimento na Casa da Mulher Brasileira. Naqueles minutos de espera por atendimento, enquanto aguardava ser chamada, a memória recapitulava os anos de agressões praticadas pelo ex-companheiro e pai do filho que estava em seu ventre.
Bárbara sentia muito medo de estar ali, mas também temia ir embora. Calculava mentalmente as prováveis consequências da decisão, mas, naquele momento, nenhuma alternativa parecia levá-la a um desfecho feliz. Decidiu ficar para fazer a denúncia pela Lei Maria da Penha.
“Pensei: vou passar fome, mas estarei viva para correr atrás”, diz. Para ela, aquele dia foi uma das datas mais importantes de sua vida. Mas o sofrimento era tão asfixiante que parte daquela lembrança foi apagada da memória. Tanto que, dias depois, quando precisou retornar, ela não lembrava como chegou à Casa da Mulher.
“Tinha esquecido como fui e onde era porque a minha mente estava muito atribulada”, conta. As razões pelas quais decidiu buscar ajuda, no entanto, nunca irão desaparecer da sua história. Bárbara chegou ferida após “ter levado uma surra tão grande” que “quase feriu” o bebê e “quebrou o pescoço” dela. Não havia sido a primeira vez.
Desde o início da gravidez, ela sofria com as agressões físicas. Antes da gestação, durante os três anos de relacionamento, eram verbais e psicológicas. Os ataques eram motivados pelo ciúme excessivo. Bastava olhar para o lado, cumprimentar um vizinho ou qualquer mínima interação com outro homem para o agressor manifestar ira. O uso de roupas supostamente provocantes também era pretexto para agressão.
Bárbara estava fatigada daquela situação. Queria se separar, mas ele prometia mudar. Depois, o agressor começou a ameaçá-la de morte. Trabalhar também não era possível porque o então companheiro dava sempre um jeito de impedir. No último emprego, a jovem foi demitida devido às perseguições durante o expediente.
Ela também foi obrigada a trancar a matrícula na faculdade. O homem conseguiu bloquear todas as fontes de renda e a convivência com amigos e familiares. Só restavam ele e os filhos na vida dela. Por isso, no dia da decisão de fazer a denúncia, Bárbara não sabia como faria para comprar alimentos e planejar o futuro.
Levou tudo, tudo, dizendo que só desse jeito eu voltaria para ele”, recorda.
Quando o ex-companheiro foi intimado, ele correu para o apartamento onde o casal morava e tirou os móveis e eletrodomésticos. Bárbara ficou somente com os filhos.
Sem emprego, com um filho prematuro no colo, a jovem relata ter sobrevivido graças às doações de conhecidos e familiares.
O acolhimento como guia para uma luz no fim do túnel
Após 15 dias, Bárbara recebeu uma ligação da Casa da Mulher para fazer um curso de capacitação. “Recusei porque estava com um bebê de 15 dias, pois meu filho nasceu de sete meses por conta da agressão, mas me disseram que, se eu quisesse, poderia levar o bebê e seríamos acolhidos”, conta.
“Nunca imaginei esse tipo de apoio. Comecei a fazer vários cursos para ser encaminhada para as vagas. Um dia, me disseram que sabiam da minha capacitação profissional, mas, naquele momento, havia apenas uma vaga de serviços gerais e perguntaram se eu queria”, completa.
Aceitei na hora, de todo o meu coração. Fique tão feliz, tão feliz, igual a uma criança. Eu estava comendo o que me davam e tinha dia que nem comia”, relata, com gratidão.
Com um salário, Bárbara comprou uma geladeira parcelada, uma cama e fogão usados. Voltou para a faculdade, segue fazendo outros cursos e voltou a sonhar com um futuro feliz. “Foi tudo tão difícil, mas, agora, consigo ver que virão dias melhores”, afirma.
O agressor foi preso pela Lei Maria da Penha e solto 20 dias depois. Atualmente, Bárbara não tem mais contato e não recebe mais ameaças.
O curso de capacitação ao qual Bárbara teve acesso e a vaga de trabalho foram viabilizados a partir do setor de autonomia econômica, uma das várias frentes de atuação da Casa da Mulher Brasileira. O equipamento existe no Ceará há seis anos, tendo iniciado em parceria entre o Governo Federal e o Governo do Ceará.
Hoje, é mantido pelo executivo estadual, sendo vinculado à Secretaria das Mulheres do Estado. Desde a criação, em 2018, foram realizados 237,6 mil atendimentos, incluindo primeiros atendimentos, retorno, acolhimentos na brinquedoteca, atendimento a visitantes e acompanhantes.
À frente do departamento de autonomia econômica desde a implementação da Casa da Mulher, Daniele Magalhães explica que a área é responsável pela profissionalização e inserção das mulheres em situação de violência no mercado de trabalho. Também é trabalhado junto às assistidas o incentivo ao empreendedorismo, tudo para a mulher ser cada vez mais independente financeiramente do agressor.
“Muitas delas até têm a oportunidade de emprego de carteira assinada, mas existe a dificuldade para ficar nesse emprego pela falta de rede de apoio para cuidar dos filhos”, pontua Daniele.
Infelizmente, ainda é insatisfatório o número de empresas com políticas que contribuam para a contratação de mulheres vítimas de violência doméstica. No Ceará, de acordo com relatório do Governo Federal divulgado no início deste ano, apenas 4% das empresas possuem esse tipo de postura.
Empoderamento financeiro
Daniele frisa a importância da luta para o empoderamento financeiro da mulher no contexto de combate à violência doméstica. “A gente percebe que muitas dessas mulheres que sofrem violência permanecem dentro do ciclo porque dependem financeiramente do agressor. Normalmente, são encaminhadas ao setor de autonomia econômica aquelas mulheres em situação de vulnerabilidade financeira”, diz.
Na esteira do trabalho de empoderamento financeiro da mulher, Daniele ressalta que o setor busca conscientizar as assistidas sobre a violência patrimonial, uma das táticas usadas pelo agressor para enfraquecer a mulher. A prática costuma vir junto das agressões psicológicas, verbais e físicas.
“A gente, infelizmente, percebe, nas nossas escutas, ainda não haver muita consciência sobre a violência patrimonial. Por promovemos, por meio do setor, rodas de conversa, ciclos de diálogos, grupos terapêuticos e palestras sobre o tema”, explica Daniele.
A conversa por meio das rodas e palestras é reverberada e fortalecida não só pelo setor, mas pelos frutos. Daniela, com orgulho, detalha sobre os grupos de WhatsApp criados pelo setor onde são divulgadas vagas de emprego, cursos e eventos. Muito mais do que isso, esses espaços são grupos de apoio onde uma segura a mão da outra.
“A gente pede, no atendimento, para adicioná-las aos grupos de WhatsApp. Esse círculo fortalece muito, porque elas conhecem outras mulheres que passaram pela mesma situação e tiveram a autoestima completamente devastada. E elas fortalecem umas as outras, fazem amizades, se encontram, marcam viagens. É fundamental para o fortalecimento da saúde mental delas”.
*Nome fictício usado para resguardar a identidade e preservar a segurança da entrevistada.
A reportagem seriada 'Não Basta Estar Viva' foca na autonomia econômica para o enfrentamento à violência doméstica. Neste segundo episódio, você conheceu a história de Bárbara. Na última reportagem, conhecerá a trajetória de Joana (também nome fictício). Três mulheres que conseguiram recomeçar a vida e voltar a sonhar graças à política pública de autonomia financeira.