Seis anos após iniciadas as operações da Companhia Siderúrgica do Pecém (CSP) - e três anos desde a primeira vez que o Diário do Nordeste mostrou o imbróglio judicial envolvendo a construção da mega indústria -, pelo menos cinco empresas cearenses, que ajudaram a erguer um dos maiores investimentos privados da história do Ceará, continuam sem receber o pagamento pelos serviços, prestados entre 2013 e 2015.
As dívidas somam quase R$ 284 milhões, considerando a conversão de um débito em dólar no valor de US$ 50 milhões e a cotação intradia em 30 de agosto, de R$ 5,05.
Com processos que se arrastam há anos na Justiça, eles agora compartilham sentimentos difusos em relação à venda da siderúrgica para a gigante ArcelorMittal, que anunciou a compra em junho deste ano por US$ 2,2 bilhões.
Quando a transação, avaliada pelo Conselho de Administração e Defesa Econômica (Cade), for concluída, Vale (50%), Posco (30%) e Dongkuk (20%), atualmente acionistas da CSP, deixam o comando da companhia.
Um dos medos relatados por esses empresários é que a saída dos acionistas trave ainda mais os processos que correm na Justiça brasileira envolvendo a siderúrgica e a Posco Engenharia e Construção do Brasil, empresa ligada à Posco Inc, acionista da siderúrgica no Ceará.
Procurada pela reportagem, a ArcelorMittal disse que não se manifestará sobre o tema e frisou que "não assumiu o controle da CSP".
"A empresa não se manifestará sobre o tema. A ArcelorMittal não assumiu o controle da CSP. A consumação da operação está sujeita ao cumprimento de condições precedentes, dentre elas a obtenção de aprovações regulatórias, incluindo a do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade)", diz a nota da ArcelorMittal.
Dívida de R$ 20 milhões
“O silêncio incomoda”, diz Deda Studart, principal acionista da Maqloc, subcontratada pelas empresas Braco e Dongyang, para a locação de andaimes industriais utilizados na construção da CSP. Com o anúncio da aquisição da siderúrgica pela ArcelorMittal, ele espera que “haja uma diligência em relação aos passivos que a companhia possui em aberto e que eles sejam resolvidos”.
A participação da Braco, Dongyang e de outras empresas coreanas se deu por contrato com a também coreana Posco Engenharia, subsidiária da Posco Inc.
“Acho que já está mais do que na hora dessa conta ser acertada. Tudo o que foi feito com empresas cearenses não pode continuar sendo esquecido pela CSP”, lamenta Deda Studart.
A Maqloc, além do serviço que não foi pago, teve que lidar com o prejuízo do equipamento que sumiu - parte desse equipamento a Maqloc havia alugado de uma empresa de Minas Gerais. Hoje, a dívida atualizada totaliza R$ 20 milhões.
O processo da Maqloc contra Dongyang, CSP e Posco Engenharia e Construção do Brasil está na 2ª Vara da Comarca de São Gonçalo do Amarante desde 2016. De acordo com um documento de abril deste ano ao qual o Diário do Nordeste teve acesso, a legitimidade passiva ad causam da Posco Engenharia e da CSP "já foi objeto de recurso junto ao Tribunal de Justiça do Ceará e foi mantida pelo Tribunal".
Enquanto o processo se arrasta na Justiça, a Maqloc tenta lidar com passivos acumulados em decorrência das dívidas e teve que dar “vários passos para trás”.
“Nós perdemos capacidade de locação, tive que vender equipamentos, me desfazer de capital próprio para indenizar nossos parceiros, demitir colaboradores. A Maqloc era uma empresa sem passivo e hoje nós temos um passivo vencido, haja vista essa inadimplência por causa dessa obra (da CSP)”, diz o empresário.
Equipamentos não foram devolvidos
Em situação semelhante está a Magna Locações. As dívidas com a Dongyang Construction do Brasil e a Braco, somadas, ultrapassam os R$ 5 milhões. Cerca de 20% do valor representa as faturas vencidas e os outros 80% correspondem ao equipamento que também ficou retido e nunca mais foi recuperado.
"A obra finalizou e eles não devolveram material. E estava tudo em contrato, que caso o equipamento não fosse devolvido, caberia indenização", pontua César Jucá, presidente da empresa. "Privou a gente de crescer, ainda temos cicatrizes não curadas. A gente ficou 'sem subir degraus' por um bom tempo para se recapitalizar".
Para ele, o anúncio da compra da CSP pela ArcelorMittal reacendeu de certa forma uma esperança sobre o andamento dos processos na Justiça. "Não tivemos nenhuma ligação. A gente está querendo o que é nosso. Sempre temos essa esperança de um dia conseguir ter esse dinheiro de volta".
A Zona de Processamento de Exportação, subsidiária do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (Cipp), onde está localizada a CSP, foi requisitada pela Justiça a prestar informações sobre a entrada de equipamentos no complexo entre abril de 2014 até dezembro de 2017.
O ofício foi entregue em dezembro de 2019, mas não foi cumprido, de acordo com os empresários. Assim, foram expedidos novos ofícios em outubro de 2021 e março deste ano.
A CSP disse que "posiciona-se apenas sobre a própria empresa, não tendo ingerência ou responsabilidade pelas relações comerciais de seus eventuais fornecedores com suas respectivas subcontratadas".
Disse ainda que "as fornecedoras não mantêm quaisquer relações comerciais com a CSP atualmente" e que não há informação e/ou notificação oficial sobre qualquer decisão judicial envolvendo o tema.
"As operações da CSP, assim como seus compromissos com clientes, fornecedores e demais públicos, seguem seu fluxo regular e a empresa reforça o compromisso de produzir aço de forma segura e sustentável, tendo a ética como um valor", arremata a nota da Companhia Siderúrgica do Pecém.
Procurada pela reportagem sobre o ofício para se pronunciar e sobre o controle da entrada e saída dos equipamentos, a “ZPE Ceará, empresa subsidiária do Complexo do Pecém, informa que não tem registros de movimentação fiscal, relativos ao serviço ora mencionado, e consequentemente também não possui registros da mencionada movimentação de equipamentos”.
Cimento fornecido não foi pago
A Dongyang também possui uma dívida em aberto com a Apodi, que forneceu cimento para a obra a partir de 2015, "porém em 2016, após várias tentativas de negociação sem êxito, entrou com um processo judicial contra a empresa devedora", diz a nota enviada pela empresa cearense.
A dívida atual é de R$ 2,38 milhões. De acordo com a Apodi, em maio deste ano foi emitido despacho "para intimação pessoal da ré para regularizar a situação processual, considerando renúncia de mandato. E, no atual momento, a Cimento Apodi aguarda retorno".
Em varas de São Gonçalo do Amarante e de Fortaleza estão os processos da Cordeiro Guindastes envolvendo a Dongyang e a Braco, ambos parados e atualmente em R$ 4 milhões. As dívidas se arrastam desde 2014. Além disso, outras empresas ligadas à Posco Engenharia e Construção do Brasil fizeram dívidas com a empresa cearense.
Ao sócio da Cordeiro Guindastes, Alfredo Cordeiro, resta a esperança de que, com a venda da CSP, a ArcelorMittal tenha "um olhar diferente para a situação dos empresários cearenses". "Essa dívida conosco levou a demissões e corte de crescimento", lamenta.
Outra empresa mencionada à época da primeira reportagem sobre as dívidas envolvendo a construção da CSP contraídas junto aos empresários cearenses, a Fornecedora Máquinas foi procurada, mas não respondeu até a publicação desta reportagem.
‘A maior dívida de todas’
É diretamente com a Posco Engenharia e Construção do Brasil a maior dívida que se sabe envolvendo o período de construção da CSP. É o que afirma o advogado Frederico Costa, proprietário do escritório Campelo Costa.
A dívida em aberto, de acordo com ele, é de US$ 50 milhões, cerca de R$ 250 milhões. Frederico foi contratado para intermediar o recebimento pela Posco Engenharia e Construção do Brasil dos recebimentos finais do contrato de construção da CSP.
"E uma das sócias, a majoritária, Vale, estava tendo problemas para fazer esse pagamento, alegando exatamente que a Posco não estaria cumprindo as responsabilidades dela frente a terceiros, ou pelo menos não estava conseguindo demonstrar", explica Frederico.
Essa demonstração seria a partir de certidões negativas. "Então a Posco Engenharia dizia que não estava pagando porque não tinha o vencimento da parcela final, que era com esse vencimento que ela ia pagar".
"Aí a Vale dizia: 'não, você paga e depois eu lhe pago', então ficou um problema. O meu trabalho foi tentar não chegar a uma briga. A Posco não queria uma arbitragem. Trabalho foi feito, receberam o dinheiro, não pagaram os trabalhadores aqui, nem mesmo a mim", lamenta.
A Vale foi procurada pela reportagem e questionada sobre estar ciente da situação à época, mas não houve retorno até a publicação deste material.
A reportagem tentou contato com a Posco Engenharia e Construção do Brasil, mas não foi possível localizar a empresa pelos telefones aos quais o Diário do Nordeste teve acesso. Na consulta pública de Cadastro Nacional Pessoa Jurídica do Governo Federal, a empresa encontra-se ativa e possui capital de R$ 966.482.807.
Também houve tentativa de contato com a Posco Inc. por meio do site internacional da companhia, mas não houve retorno até a publicação desta matéria.
Mas a ArcelorMittal sabia disso quando comprou a CSP?
A notícia de que a CSP seria vendida para a ArcelorMittal foi recebida com aflição pelo advogado. Ele acredita ser possível que a ArcelorMittal tenha adquirido a CSP sem saber do que ele chama de “passivo oculto”. “É quando o comprador não sabe tudo aquilo que a empresa que ele comprou está devendo. É da natureza do passivo oculto ser oculto”, explica.
“Se está judicializado, é feita uma diligência - eles devem ter grandes escritórios, e são encontradas as dívidas. Mas há mil formas de fraudar isso: dando relatórios de que as situações estão sendo resolvidas, que o valor é outro e que eles vão ganhar essas ações, por exemplo”. Além disso, ele pontua que nem todos os processos são públicos - alguns correm em segredo de justiça - à pedido da Posco -, como é o caso das ações envolvendo o escritório Campelo Costa.
De acordo com ele, “não será uma surpresa se a ArcelorMittal noticiar em breve uma arbitragem para recalcular os valores da compra porque as sócias teriam escondido dívidas, escondido passivo”, afirma Frederico Costa.
A ArcelorMittal foi questionada sobre o conhecimento dos processos envolvendo a construção da CSP, mas respondeu com a nota citada no início desta reportagem.
Processos na Justiça
Um levantamento feito pelo advogado à pedido da reportagem mostra que a Posco Engenharia e Construção do Brasil possui 50 processos na Justiça Estadual, 10 na esfera trabalhista e três na Justiça Federal.
Na Justiça Estadual, as ações correspondem à falta de pagamento a fornecedores que prestaram serviços na construção da CSP e questões tributárias, como ICMS e ISS não recolhidos, além de execuções tributárias.
Na esfera trabalhista, as ações se tratam do não-recolhimento de verbas trabalhistas ou de qualquer direito trabalhista direcionado aos trabalhadores, de acordo com o advogado.
Na Justiça Federal, Frederico Costa aponta três processos e destaca importância de dois deles. “O primeiro se trata de uma execução fiscal redirecionada para a Posco em razão de ter sido identificado que ela, através de seu grupo econômico localizado no exterior, realizou diversas operações em solo nacional sem recolher tributos”. A execução chega a R$ 30 milhões.
“O segundo, trata-se de uma ação movida pelo Ministério Público a fim de verificar eventual elisão fiscal, evasão de divisas e outros crimes realizados em solo nacional por dirigentes da Posco”, diz Costa.
Evasão de divisas e associação criminosa
Em 2019, o Diário do Nordeste também noticiou que a Braco estava sendo apontada pelo Ministério Público Federal no Ceará como "empresa de fachada" da Posco Engenharia e Construção do Brasil.
Foram denunciados pelo MPF o sócio da Braco, Jung Geun Park, conhecido no Brasil como “Mário Park”; Jong Su Kim, apontado na denúncia como administrador presidente da Posco Engenharia; Jiho Kim, primeiro gestor da Braco; In Wook Kim, administrador da empresa antes do coreano Mário Park, e mais outras quatro pessoas ligadas à Braco e à Posco.