Cla, clac, cla, clac… Quem viveu os anos 90 deve ter na memória o registro do barulho das máquinas remarcadoras de preços nos comércios. Em todos os corredores dos mercados que se entrava, não importava o momento do dia, estavam lá os remarcadores de preços etiquetando novamente os produtos e mostrando que a inflação estava ali, comendo o dinheiro do trabalhador antes mesmo que ele se alimentasse do arroz e feijão que tinha ido comprar.
No período, o país chegou a ter inflação anual de quatro dígitos, com destaque para 1990, quando o índice chegou a 6.390%, algo inimaginável para quem vive aqui desde os anos 2000 e teve a maior inflação registrada em 2016, com 11%.
Foi em 1º de julho de 1994 que as remarcadoras foram aposentadas, e com elas a sensação de que o salário, no final do mês, já não valia mais nada. A data marca a implantação do Real como moeda oficial do país. Na época, esse foi o marco de fechamento de um pacote de medidas, chamado de Plano Real, cujo objetivo era acabar de vez com a hiperinflação e estancar o abismo social que existia.
No Ceará, a realidade era a mesma do restante do País, como agravante da desigualdade social ainda mais evidente, segundo o engenheiro civil, empresário e ex-secretário de Desenvolvimento Econômico do estado, Francisco Maia Júnior.
“Lembro bem que tivemos uma inflação de 72% em um único mês, naquela época. Isso trazia problemas econômicos muito grandes, principalmente para os mais pobres, que tinham a renda, os salários, corroídos ao longo do mês e dos anos e não possuíam nenhum instrumento de defesa”.
Maia Júnior também explica que para os empresários, a hiperinflação deixava as rotinas prejudicadas e os fechamentos de concretos, verdadeiros tiros no escuro. “Não tinha planejamento que desse certo. Entre redigir o contrato e assinar, os valores já estavam defasados. Era muito ruim. Com o real diminuíram muito as indexações de contratos, além de se trazer a estabilização do câmbio”.
O empresário e ex-secretário reforça que “sem sombra de dúvidas, o controle da pobreza foi o maior plano que veio no Real”.
O Ceará e muitos outros estados saíram de uma condição de endividados, para uma situação de pagar em dia, com melhoria de serviços e sem escassez de produtos”.
Plano foi sucesso e “elegeu um presidente”
Antes do Plano Real foram tentadas outras iniciativas que acabaram mal sucedidas. Cada uma tinha uma característica diferente. No Plano Cruzado, a estratégia era baseada no congelamento de preços. Já no caso do Plano Collor, quem viveu o período também lembra de terem sido confiscadas as cadernetas de poupança da população.
Assim, o Plano Real é considerado um divisor de águas e o plano econômico de maior sucesso do Brasil, por estar vivo até hoje, sendo a moeda mais longínqua depois dos réis (adotado ainda no Brasil Colônia e que circulou até 1942) e por estabilizar a inflação e, com isso, a economia brasileira.
Para dar certo, no processo de mudança da moeda foi criado um índice, a URV (Unidade Real de Valor), que era atualizada diariamente até que, em julho, os preços em URV foram convertidos em preços em real. Essa estratégia também foi usada para acabar com a indexação (sistema de reajuste ou correção de preços), prática comum que acaba ampliando ainda mais os efeitos da inflação.
Apresentado pelo então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso (FHC), o Real garantiu a sua popularidade e a vitória nas eleições, em primeiro turno, em 1994. Inclusive, FHC deixou o cargo, para concorrer à presidência, antes do lançamento da moeda, tamanha a confiança que o grupo político tinha de que a economia melhoraria e que FHC seria o novo presidente (o que ocorreu com 54,3% dos votos, contra 27% de Lula, segundo colocado).
Crise da hiperinflação vinha desde a década de 70
O professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e presidente da Academia Cearense de Economia (ACE). Lauro Chaves, conta que as medidas político-econômicas que levaram o nome de Plano Real, foram construídas para reprimir um processo de hiperinflação que assolava a economia brasileira desde a crise do petróleo, na década de 70.
“Com esse objetivo ele teve 100% de sucesso porque nós conseguimos debelar a inflação. Ele promoveu uma troca de moeda e usou o câmbio como âncora para estabilização da economia. Até hoje nós temos uma estabilidade, uma inflação sobre controle e isso nós não podemos perder nunca porque a inflação ela é um mal para a economia e penaliza, principalmente, os mais vulneráveis”.
Sobre o que ainda falta ser feito para a melhoria das condições econômicas, Chaves reforça que são ações que não eram de competência do Plano Real, mas da política econômica, que busca pelo desenvolvimento do País na totalidade.
A estabilidade é uma condição necessária para podermos desenvolver o Brasil, reduzir as desigualdades regionais e as desigualdades sociais, acabando com a extrema pobreza e melhorando a qualidade de vida dos brasileiros. O Plano Real que serviu para estabilizar a economia e dar condições de uma política econômica ser melhor implantada”.
Câmbio fixo é substituído pelo manuseio da taxa de juros
Em 1999, o regime de câmbio fixo, que era o segredo do Plano Real, é substituído pelo regime de metas para inflação, em um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Esse, segundo o economista e professor Ricardo Eleutério Rocha, conselheiro do Conselho Regional de Economia (Corecon-CE) e membro da ACE, é o regime que a economia brasileira opera até hoje.
O Banco Central manuseia a taxa de juros, a Selic, de tal sorte que a taxa de juros maior, esfria a economia e contém inflação, já a taxa de juros menor, anima a economia, gera mais crescimento".
Deficiências estavam mascaradas
Apesar de todos os benefícios do Plano Real, Eleutério destaca que a super inflação mascarava várias ineficiências na economia brasileira. Por exemplo, a maior receita dos bancos era chamada de receita inflacionária.
“Quando a inflação cai vertiginosamente com o Plano Real, os bancos perdem a receita inflacionária e começa a ter uma fragilização no sistema financeiro. Vários bancos públicos e privados começam a desmoronar no país, quebrar”, lembra.
Com relação aos estados, e no Ceará não era diferente, o economista explica que as receitas tributárias eram corrigidas pela inflação, indexadas, enquanto as despesas não, e isso criava, artificialmente, um superávit nas contas públicas.
“Quando veio o Plano Real e a inflação despenca violentamente, o que acontece? As despesas do setor público, em termos reais, ficam mais elevadas, e as receitas perderam a correção. Então, isso gerou um desequilíbrio fiscal dos estados que precisaram de um socorro do governo federal para dar um equilíbrio nessa nova realidade macroeconômica do país”, destaca.
Décadas depois, quais são os nossos desafios?
Todos os três especialistas ouvidos nesta matéria afirmam que o maior desafio econômico ainda é a manutenção e redução da inflação, conquista com o Real. Porém, para Maia Júnior, o juro real elevado (como está atualmente) diminui o consumo e a produtividade do País, além de segurar possíveis investimentos.
“É preciso fazer o dever de casa, manter o ajuste fiscal e se modernizar, para que a nossa produção cresça”.
Já o economista Ricardo Eleutério, destaca a conjugação da estabilidade monetária com a distribuição de renda, e com a política econômica fiscal como pontos cruciais de cuidado para a economia brasileira.
“Temos como desafios econômicos a manutenção dessa, que foi a maior conquista econômica do país nos últimos 30 anos, sendo a estabilidade monetária e o controle da inflação. Isso tem que ser conjugado, também, com uma melhor política de distribuição de renda, de redução da desigualdade da pobreza, que é uma infelizmente uma das características do nosso país e a busca de equilíbrio fiscal para a economia brasileira, que também vem sendo muito debatida”.