Violência gera perda do direito à cidade

Durante segundo dia, debates pautaram a relação entre o cenário urbano e os conflitos de territórios

Há muitas Fortalezas dentro de uma só. E o que deveria ser integração, fragmenta. Segrega. Exclui. Afinal, quem ocupa cada pedaço da cidade e em que condições faz isso? Como discussão necessária, o direito aos espaços públicos pautou, na manhã de ontem, as discussões do painel "Cenário Urbano e Segurança Pública: violência, conflitos e territorialidade", realizado no segundo dia do Seminário Internacional sobre Segurança Pública, que segue até a noite de hoje no prédio anexo da Assembleia Legislativa de Fortaleza (Alce).

Se a violência, por si, já é uma problemática de resolução complexa, a dinâmica recente de domínio de territórios pelo crime organizado a tem agravado, segundo aponta o professor de Arquitetura e Urbanismo e coordenador do Laboratório de Estudos da Habitação (Lehab) da Universidade Federal do Ceará (UFC), Renato Pequeno. "Precisamos fazer uma leitura das desigualdades na cidade a partir da forma como as moradias se apresentam - e elas estão impregnadas pela violência. A territorialização de determinadas áreas, que passam a ser dominadas e ocupadas pelo crime, refletem um problema de ausência do Estado", critica o pesquisador da UFC.

Para Pequeno, a expansão da informalidade nas ocupações e favelas de Fortaleza, "que se dá não apenas em relação à moradia", deságua na ausência do Estado e abre espaço para a disseminação da insegurança e da violência, "cada vez mais forte nessas áreas". "Nós temos de nos preocupar com a qualidade urbanística dos espaços públicos. Como eles são produzidos, qual é a programação que a cidade tem para ocupá-los com atividades culturais, qual a qualidade têm para que sejam convidativos, qual o grau de manutenção. Com a ausência do Estado, esses espaços passam a ser precarizados e daí surgem os conflitos", analisa, apontando, ainda, para o consequente reforço das desigualdades sociais e da violência.

ARTE
Praças

"Na cidade formal, há projetos como a adoção de praças. Por outro lado, temos espaços públicos extremamente precarizados nas periferias. Isso evidencia que existem diferentes formas de governar, que atendem a população de forma diferenciada, fortalecem uma polarização".

Apesar de defender a "presença do Estado" nesses locais, Renato Pequeno ressalta que esse deve ser um processo qualitativo. "Não precisamos de um Estado punitivo, mas que invista em educação, cultura e na qualidade de vida das pessoas. É a melhor maneira de ir contra o problema da insegurança pública nas cidades", conclui, tendo a ideia reforçada pelo professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Michel Misse.

Opção

"A Polícia não pode ser baseada numa perspectiva militar, mas preventiva. É necessário trazer a juventude de volta, ter políticas públicas que deem oportunidade - que façam com que, no cálculo final, os jovens concluam que o crime não é a melhor opção", avalia o sociólogo. Isso porque, além da perda do direito à cidade e da necessidade de políticas públicas para mitigar o problema da violência, o painel discutiu ainda a demanda pungente de mudança de abordagem combatente que se tem adotado na tentativa de resolver o problema da violência - cada vez mais amplo e intersetorial.

Participação

"Segurança cidadã é um direito que os governos devem garantir. Não é de direita nem de esquerda, o criminoso não pergunta sua posição política antes de roubar. Não é problema só de juízes nem de Polícia. São necessárias políticas integrais, que devem começar pelos municípios, com participação das comunidades", destaca Hugo Acero.

Além da mediação do professor Renato Pequeno e da participação dos sociólogos Hugo Acero Velásquez e Michel Misse, o painel contou ainda com a presença do professor de Medicina da Universidade de Fortaleza (Unifor), Antônio Silva Lima Neto; e do titular da Secretaria de Segurança Urbana da Cidade de Recife, Murilo Cavalcante.

Este último, aliás, destacou a necessidade de um "intercâmbio de ideias" entre as cidades nordestinas. "Recife e Fortaleza, por exemplo, são muito parecidas. Compartilhar iniciativas e pensar soluções juntos pode nos ajudar num âmbito regional", frisa Murilo Cavalcante.

Entrevista com Antônio Silva Lima Neto*

*Doutor em saúde coletiva e professor de Medicina da Unifor

Image-0-Artigo-2411251-1'
As  organizações criminosas  querem  controlar  territórios'

Por que a violência é questão de saúde e como prevenir?

Quando analisamos o perfil de mortalidade das grandes metrópoles, a principal causa de morte são os homicídios. É o principal problema de saúde pública. Por isso a necessidade de espacializar, conhecer as regiões onde existe o maior risco de assassinatos, sobretudo onde as vítimas moram - do contrário, você trata Fortaleza como se fosse uma só, e existem múltiplas cidades dentro dela. Isso se faz importante porque, dessa forma, é possível planejar políticas públicas direcionadas para as áreas que de fato necessitam delas.

Como a territorialidade imposta pelas facções afeta o acesso a serviços de saúde?

Nós temos relatos de que as pessoas não conseguem cruzar determinados espaços para acessar o sistema de saúde, sejam postos, sejam UPAs. Uma das grandes necessidades das organizações criminosas é controlar espaços e territórios. À medida em que controlam, passam a não permitir que as pessoas trafeguem.

As áreas de maior incidência de sífilis e tuberculose em Fortaleza, por exemplo, são aquelas com mais homicídios. Qual a relação?

É a relação de pobreza. Esses agravos são os ditos 'de determinação social', acometem pessoas com baixo acesso a pré-natal, que vivem em situação de rua ou em algum nível de marginalidade. As mesmas populações que têm vulnerabilidade a essas doenças, sofrem com maior ocorrência de homicídios. Por isso as intervenções urbanas, de segurança e saúde são tão importantes, porque não se refletem só sobre os homicídios, mas sobre todo um conjunto de atributos para qualidade de vida.