Instrumento de trabalho, inspiração na condução de tradicionais e novos negócios ou mesmo um meio econômico e, ecologicamente correto, para acessar benefícios como saúde, lazer e bem-estar. São muitas as finalidades da bicicleta. Por esses fatores, seu uso cresce em Fortaleza, também impulsionado pela execução de políticas públicas de mobilidade, como a ampliação da malha cicloviária e a implantação do sistema de bicicletas compartilhadas.
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Quem pedala com frequência nota a rotina das ruas com um outro olhar e sedimenta, a cada dia, uma relação "mais íntima" com a cidade. É o que observa o professor do curso de Ciências Sociais, da Universidade Federal do Ceará (UFC), e pesquisador do Laboratório de Estudos em Política e Cultura (Lepec), da Instituição, Irapuan Peixoto.
Segundo ele, quem pedala tem a chance, por exemplo, de ver, tocar, sentir os cheiros e interagir mais diretamente com aqueles com quem compartilha a cidade. Experiências que o "carro não proporciona", aponta. "O carro te blinda porque você pode estar com os vidros fechados, com ar-condicionado, ouvindo música no fone de ouvido. Então, você está alheio, alienado à cidade. Está ali transitando, mas é como se não estivesse", argumenta o professor.
Função social
Logo, para além de sua função prática como meio de transporte, a bike acaba por cumprir um papel social, no momento em que afugenta individualidades. E isso "tem um impacto qualitativo social muito forte, de você começar a se importar com o outro, com a cidade, com a natureza. Porque no afã dos grandes deslocamentos, uma cidade grande tende a se tornar fria", diz.
Embora considere significativa a ampliação da malha cicloviária da cidade - que, nos últimos quase sete anos, passou de 68,2 km para 260,9 Km -, Irapuan Peixoto aponta para a necessidade de veiculações mais frequentes de campanhas educativas de trânsito, conscientizando sobre o respeito ao ciclista e aos locais onde este trafega.
Interconexão
Ele ainda cobra um melhor planejamento de vias e integração entre as 80 estações do sistema de bicicletas compartilhadas, o Bicicletar, hoje instaladas em 27 bairros da Capital. Isto, considerando que se trata de uma política pública barata. "Literalmente, é só pintar o chão. Pra servir de fato pra cidade, essa malha cicloviária tem que ter uma melhor distribuição e, principalmente, uma boa interconexão". Sem isso, avalia, o ciclista não pode confiar no sistema para ir a locais onde cumpre horário, como o trabalho, anulando assim a sua função inicial, que é priorizar o uso da bicicleta, em detrimento dos meios de transporte motorizados.
Urbanista da Bloomberg Philanthropies, iniciativa que atua em parceria com a Prefeitura de Fortaleza em projetos de segurança viária, Beatriz Rodrigues rebate que não há como implementar uma interconexão imediata da malha. "Toda ciclofaixa tem um fim e um começo, então, em nenhuma cidade se coloca uma malha toda de uma vez de infraestrutura cicloviária. Em Fortaleza, a diretriz primeira foi: vamos implantar o máximo que der, em todos os lugares possíveis", justifica.
O reforço investido na infraestrutura cicloviária da Capital, afirma Beatriz, visa a incentivar, cada vez mais, o uso do modal. E a disponibilidade de ciclofaixas, ciclorrotas, ciclovias e passeios compartilhados, acrescenta, tem o "papel de oficialmente dar o espaço do ciclista, como também de mostrar no imaginário coletivo que aquele usuário existe, que tem espaço pra ele no trânsito".
"A infraestrutura é relativamente fácil de mudar, já a cabeça das pessoas é muito mais difícil", reconhece Beatriz. Como forma de ampliar a segurança dos ciclistas, a Prefeitura deve distribuir cerca de 5 mil balizadores nas ciclofaixas. Com a sinalização, a percepção de segurança é maior.
Infraestrutura
Engenheiro e cicloativista, Phelipe Rabay confirma que Fortaleza, hoje, dispõe de uma infraestrutura capaz de acolher uma grande quantidade de ciclistas. Por conta do trabalho, ele ressalta que passou a pedalar menos do que gostaria, pois a atividade reduz o seu nível de estresse.
"Quando você anda de bicicleta, passa em frente a comércios, pode fazer várias paradas. Já quando estou de carro, penso no transtorno de estacionamento; você tem origem e destino e a preocupação de pegar menos trânsito", relata.
Conforme o Diário do Nordeste publicou, na edição do último dia 16, a pesquisa Origem-Destino, que vem sendo desenvolvida pela Prefeitura desde fevereiro deste ano, aponta que 84% dos ciclistas de Fortaleza utilizam a bicicleta para se locomover ao trabalho ou ao estudo. Conforme a análise, um a cada três deslocamentos na Capital é realizado a pé ou de bicicleta.
Ocupação
Trabalhar. Eis o verbo que rege o caminho de Joel Lopes, de 29 anos. Não fosse uma das magrelas disponíveis nas sete estações do projeto Bicicleta Integrada, instaladas nos terminais, o jovem não poderia sair às ruas para realizar as entregas solicitadas via aplicativos. Desempregado, enxergou nas plataformas digitais de delivery a "melhor oportunidade" para continuar a garantir o sustento dos dois filhos pequenos - um de três e outro de apenas um ano.
Há pouco mais de um mês, sua rotina é sair do bairro Jardim Iracema, onde mora, para retirar uma bicicleta no terminal do Antônio Bezerra - com a qual permanece por até 14 horas - e pedalar rumo à Aldeota, uma das áreas onde há maior concentração de fast foods e restaurantes.
Enquanto ainda experimenta a nova fonte de renda, explora novos cantos da Capital. "Eu trabalho com a bicicleta compartilhada por cerca de sete a oito horas por dia. Estou gostando, porque não tenho chefe. Só tenho que agradar mesmo o cliente", opina.
Ele ressalta, porém, que o uso da bicicleta integrada foi um "plano B" ao qual teve que recorrer recentemente. Antes, Joel circulava pelas ruas com a bike do irmão, Jonatha Lopes, 33, mas este também passou a necessitar dela para exercer a mesma atividade, pois perdeu o emprego.
Joel Lopes é um entre os que utilizam a bicicleta do sistema público para trabalhar. Como muitos, sai todos os dias da periferia em busca de uma renda no centro comercial de Fortaleza. Contextos como o vivido por ele demonstram que não foi a difusão do uso da bicicleta que levou a população de baixa renda a adotar o modal como um meio de transporte. O costume é antigo. "A gente não pode cair no discurso de que a bicicleta é novidade", alerta o sociólogo Irapuan Peixoto.
Ele questiona, ainda, que as estações do Bicicletar se concentram nos bairros nobres da cidade. Beatriz Rodrigues, por sua vez, justifica que "o sistema vai ser ampliado para outros bairros, principalmente pra periferia" e que um fator que "garante o sucesso desse sistema é que esteja em áreas mistas, onde tenha pessoas morando e trabalhando".
Para o professor da UFC, "ainda não há uma cultura de bicicletas em Fortaleza", porque aqui, e no Nordeste como um todo, o carro predomina como um status. "A questão cultural é complicada, mas a disseminação das ciclofaixas fez as pessoas terem uma postura um pouco diferente sobre o ciclista", finaliza.