Um incêndio atingiu, em 2020, um casarão construído no Centro de Fortaleza em 1830. Além das perdas na estrutura, a ocorrência afetou o processo de tombamento definitivo do bem que era protegido provisoriamente. Outras dezenas de imóveis aguardam há anos, alguns deles há mais de uma década, resposta do poder público sobre a proteção permanente.
Há também prédios tombados, como o Edifício São Pedro, condição física hoje, apesar da relevância histórica, é um risco. Além daqueles que, na falta de proteção oficial, são extintos gradativamente, como a casa na Rua Sena Madureira, recentemente noticiada.
Situações difíceis, complexas, e que no cotidiano podem fazer parecer que o tombamento, medida legal para a garantia de preservação, é ineficiente. Na realidade, é graças a essa providência essencial que muitos dos bens históricos ainda existem.
Em Fortaleza, o último tombamento definitivo na esfera municipal ocorreu há quase seis anos, em julho de 2015, segundo a Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor) - o Colégio Marista Cearense, no Centro.
Atualmente, a cidade tem 64 bens tombados. Sendo 7 na esfera federal, 25 pelo Governo Estadual e 32 pela Prefeitura. Há outros 53 protegidos provisoriamente, e aguardam uma decisão do município.
Mas o tombamento, diferentemente do que se pensa, é apenas o começo, e não o fim do trabalho de proteção, conforme argumentam profissionais ouvidos pelo Diário do Nordeste. Por isso, a solução é melhorá-lo.
O que fazer para garantir êxito na preservação? Por que o tombamento ainda é um dilema? Como convencer proprietários e reduzir a fragilidade da proteção? O tombamento é uma modalidade de proteção que tenta, dentre outros, evitar a demolição e a descaracterização do bem.
Antes do tombamento definitivo, o poder público pode conceder o tombamento provisório. Enquanto isso, deve ocorrer a análise para efetivação ou não da proteção permanente.
Especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste, apontam que dentre os problemas que fazem o tombamento parecer um dilema, e fragilizam a proteção, estão:
- Demora por parte do poder público nas avaliações dos pedidos de tombamento;
- Necessidade de ampliação das equipes que fazem essa análise para dar celeridade às respostas;
- Inexistência de um trabalho ativo de rastreio e registro de possíveis bens a serem catalogados e preservados em cada bairro, sobretudo, nos mais antigos;
- Em relação aos bens particulares, dificuldades devido ao conflito de interesse sobre o uso;
- Avanço da especulação imobiliária que torna alguns terrenos valiosos e aumenta os dilemas entre as partes interessadas;
- Necessidade de conhecimento e efetivação de medidas que minimizem esse conflito, como a garantia de isenção no IPTU de imóveis tombados, dentre outros.
Em Fortaleza, a Lei Municipal 9.347/2008, que rege os processos de proteção do patrimônio histórico-cultural e natural, não estabelece um prazo para Secultfor avaliar e apresentar um parecer quanto às solicitações de tombamento. Mas, determina que, após recebida a solicitação de tombamento, os estudos técnicos para elaboração da Instrução de Tombamento devem ser executados em seis meses.
Quais os impactos da demora?
"Os tombamentos ficam a mercê das reuniões dos conselhos, como também precisam ter uma instrução de tombamento, esta precisa ser bem elaborada, com o histórico, estado de conservação, descrição, recomendações e a criação de uma área de entorno para o bem a ser preservado. Todos estes itens demandam tempo e pesquisas para serem elaborados", explica o arquiteto e urbanista, vice-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil Ceará (IAB-CE), Robledo Valente Duarte.
Um dos exemplos dessa espera é o Casarão dos Gondim, na Rua General Sampaio, tombado provisoriamente em 2011, e só em outubro de 2020 houve a aprovação da instrução de tombamento, que precede o tombamento definitivo.
A demora nas avaliações, analisa a advogada especializada em Gestão e Políticas Culturais e mestre em Direito Constitucional, Cecilia Rabêlo, "pode trazer consequências graves, tais como a deterioração do imóvel ou bem móvel, se for o caso".
De acordo com ela, é importante enfatizar aos proprietários que "o tombamento não retira a propriedade sobre o bem, quem faz isso é a desapropriação, outro instrumento jurídico. O tombamento é o ato administrativo que impõe limitações ao direito de propriedade em virtude da necessidade de proteção do direito à memória coletiva, previsto na Constituição Federal".
Cecilia explica que no caso do tombamento pode haver um conflito de direitos - entre o direito à propriedade e o direito à proteção do patrimônio cultural - que, segundo ela, "precisa ser tratado pela legislação, equilibrando os interesses de ambos os lados na medida do possível e permitido em lei".
Além de tombar, como garantir a preservação
O arquiteto e professor do Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Design (DAUD) da Universidade Federal do Ceará (UFC), Romeu Duarte, reitera que “a equipe de patrimônio do município, que é valorosa, é pequena. Ela não vai dar conta dessa situação, porque acho que ela tem outras tarefas, principalmente de fiscalização".
Uma das alternativas, propõe ele, é o poder público formar convênios com os cursos de Arquitetura e Urbanismo das universidades do Ceará para que sejam elaboradas as instruções de tombamento. De acordo com Romeu, quando foi firmado um protocolo de trabalho conjunto com a UFC, o curso de arquitetura fez quase 30 instruções de tombamento, antes de 2013.
A Prefeitura precisa assumir o seu papel. Temos, em Fortaleza, áreas que são importantíssimas do ponto de vista da história. Elas têm patrimônio construído. Vamos montar uma proposta de identificação e documentação de todo esse patrimônio construído, aquilo que ainda está de pé, aquilo que não foi tombado, aquilo que é de interesse histórico e artístico. Vamos fazer um inventário e abrir um processo coletivo de tombamento".
Ele completa: "isso significa engessar a cidade? Não. Significa fazer uma discussão sobre como é que ela vai continuar na perspectiva de preservação do patrimônio natural, ambiental, cultural. Isso não é empecilho do desenvolvimento de negócio, muito pelo contrário, é uma valorização dos negócios, porque não cabe na cabeça de ninguém que você derrubar para transformar em estacionamento, que é um negócio fadado ao fracasso, seja o futuro do patrimônio da cidade".
Consequências da pandemia
Embora os dilemas sobre a preservação do patrimônio sejam de décadas anteriores à pandemia de Covid-19, e alguns procedimentos de avaliação de tombamento podem ocorrer de forma remota, a crise sanitária também pode interferir nas ações de proteção.
Para a advogada Cecilia Rabêlo pode afetar o processo de análise "no caso de necessária visita ao imóvel ou ao bem móvel a ser tombado". Pois, com as medidas de isolamento social, a visita pode ser prejudicada ou dificultada, "já que alguns imóveis são residenciais e outros são repartições públicas, que se encontram fechadas, em home office, ou com acesso restrito".
Já o vice-presidente do IAB-CE, Robledo Valente Duarte, reforça que interfere "na movimentação das pessoas, que são muitas vezes os olhos para fiscalizar algum bem que esteja passando por um processo de descaracterização ou demolição".
Ele destaca ainda que "o grande problema, são datas como carnaval, semana santa e outras similares, onde ocorrem demolições de bens sem a devida liberação dos órgãos de fiscalização".
Para a Prefeitura, conforme a Secultfor, a pandemia gera restrições para a realização de trabalhos de campo e visitas técnicas aos bens. Entretanto, diz a pasta, “os trabalhos de mediação, análise de projetos, fiscalização e construção de pareceres técnicos tiveram continuidade, visando superar as adversidades impostas pela atual conjuntura. Some-se a isso, a Secultfor tem contado com o auxílio de outros órgãos da Prefeitura para ampliar os braços de preservação do patrimônio cultural”.