Uma tristeza profunda, um desânimo, um incômodo que não é físico. A dona de casa Raelly Pereira de Sousa, moradora da comunidade Nova Canudos, no Grande Bom Jardim, periferia de Fortaleza, sentia-se abatida. "Eu chorava muito. Achava que ia morrer. Não tinha coragem de cuidar do meu filho de cinco anos. Eu fiquei paranóica", conta.
A manifestação dos sintomas depressivos foi no ápice da pandemia, entre abril e maio. A situação ficou complicada e a depressão evidente. Raelly precisou de ajuda. Mas, no seu território, reconhecer e acolher o problema é entrave. Ter acesso ao tratamento e comprar a medicação também. Hoje, ela segue em acompanhamento, e junto a centenas de pacientes da saúde mental, moradores da periferia, sabe que as barreiras ainda são muitas. Vão desde a superação de estigmas até a garantia do acesso aos cuidados necessários.
Na comunidade Nova Canudos, conta Raelly, há muita carência. "Aqui existe um histórico de pessoas que usam remédios controlados", explica. Violência, falta de renda, desemprego, ausência de estrutura, relata, marcam a área. No início da pandemia, Raelly ficou assustada. Depois, passou a ter preocupações excessivas. "Eu não tive nenhum sintoma da Covid, nem febre, nem gripe. Mas eu achava que estava doente. Passei a ir no posto quase todos os dias. Sentia medo, ânsia de vômito. Ficava a noite inteira acordada", relata. Foram cerca de 20 dias nesse estado.
Pandemia
A crise ficou aguda quando as mortes por Covid se acentuaram no bairro. Ela e o marido buscaram ajuda. Raelly, que é conselheira de saúde no posto próximo a sua casa, conta que não optou pelo Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) por já saber da demanda no local. A alternativa foi buscar o médico Rino Bonvini, do Movimento de Saúde Mental Comunitária do Bom Jardim, que atua no acompanhamento terapêutico de moradores de área pobres da Capital.
Hoje, ela segue acompanhada e pratica exercícios físicos. Raelly não tem trabalho formal remunerado e atua em ações sociais no bairro. Apesar das especificidades desse momento, as doenças mentais, relata ela, são dilemas recorrentes onde mora. "Minha mãe até hoje toma medicação controlada. Há muito anos ela presenciou um acidente e isso mexeu com ela. Hoje ela está bem melhor, mas ainda continua tomando a medicação".
No outro lado da Capital, no Pirambu, a consultora de imóveis, Eunice Germana, também precisou de ajuda para a filha. "Ela estava com autoestima baixa e teve um começo de depressão. Foi se isolando. Ficando uma pessoa totalmente diferente do que ela era. De imediato, o psiquiatra que eu levei, muito caro, passou logo medicação. Mas, eu percebia ela com olhar distante e, por indicação de amigos, vim até o Projeto Quatro Varas", explica. A iniciativa também recebe a população pobre de Fortaleza e garante atendimento terapêutico.
Casos
No Brasil, a estimativa feita em 2017 pela Organização Mundial da Saúde é que 5,8% da população sofre com depressão. Dados divulgados em 2019 pelo Ministério da Saúde apontam que os atendimentos ambulatoriais e internações no Sistema Único de Saúde (SUS) relacionados à depressão entre 2015 e 2018 passaram de 79.654 para 121.341, o que significa um crescimento de 52%.
Conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), a depressão é um transtorno mental frequente e é caracterizado por tristeza persistente e pela perda de interesse em atividades que, para o indivíduo afetado, seriam prazerosas. Ela difere das flutuações usuais de humor na vida cotidiana. Nos casos de intensidade moderada ou grave, segundo a OMS, pode se tornar uma condição de saúde crítica causando disfunção na vida social, incluindo o trabalho, a escola ou o meio familiar.
Em Fortaleza, o SVM solicitou à Secretaria Municipal de Saúde (SMS), a quantidade de atendimentos realizados nos CAPS entre 2018 e 2020 de pacientes com diagnóstico de depressão. Mas, o coordenador das Redes de Atenção Primária e Psicossocial da SMS, Rui de Gouveia disse que em média são atendidas por mês nos seis CAPS gerais entre 14 e 15 mil pessoas na Capital.
Acompanhamentos
De acordo com Rui, "a depressão aparece com bastante frequência não só nos CAPS, mas também nas unidades básicas, com os quadros mais leves". O ideal, explica é que as condições mais severas sejam tratadas nos CAPS, enquanto as leves sejam acolhidas nos próprios postos de saúde.
"O Caps é um nível de atenção para casos mais complexos. Que precisam de atenção mais frequente", completa.
Na Capital, relata ele, está em curso, na Regional VI, um piloto que é o ambulatório especializado em saúde mental dentro de um posto de saúde. A iniciativa envolve psiquiatra, psicólogo e assistente social.
Questionado sobre a relação território e saúde mental, Rui destaca "em muitos acompanhamentos, abordamos essa questão do impacto que o território tem no decorrer da vida. Tem vários fatores que o território pode influenciar na saúde do indivíduo", por isso, acrescenta "a nossa ideia é que amplie o ambulatório especializado para as áreas principais de demanda que, além da regional seis é a regional cinco. A regional cinco também tem demanda grande, pega bastante áreas periféricas".
Demanda deve aumentar nos próximos períodos
A experiência da pandemia tem acentuado os problemas da saúde mental. No Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) do Núcleo de Atenção Médica Integrada (NAMI) da Universidade de Fortaleza, conforme a psicóloga clínica e responsável técnica pelo SPA, Aline Herculano, nos últimos anos têm chegado casos de patologias mais graves, além do volume da demanda por atendimento psicológico também ter aumentado.
De acordo com ela, a tendência, devido os efeitos da crise sanitária é que a necessidade dos atendimentos cresça ainda mais nos próximos meses e anos. Atualmente, o SPA do Nami atende 510 pacientes com sintomas de depressão. Esse público é regulado pela rede municipal e acessa o serviço após passar pela atenção primária.
“A depressão é uma doença que não tem cura. Ela vai se agravando à medida que não vai sendo tratada. Muitas vezes, episódios depressivos se tornam transtornos porque não estão sendo tratadas”.
A psicóloga também destaca que, a depressão ainda é um tabu, mas o preconceito vem diminuindo, inclusive nos territórios em que há menor acesso à formação e conhecimento. “As pessoas que tinham o preconceito também estão adoecendo e hoje, o que a gente observa é que as pessoas com baixa renda, com dificuldade, já têm uma compreensão do que seria o transtorno”.
O psiquiatra, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria Social e criador da terapia comunitária, iniciada há 34 anos, Adalberto Barreto, também enfatiza a interrupção das atividades presenciais de acompanhamento terapêutico gerou efeitos e isso será percebido de forma mais intensa nos próximos períodos e irá forçar os gestores a repensarem as políticas de promoção da saúde. “Com a chegada da pandemia, há muito estresse reprimido, insônia, sofrimento humano e o grande perigo é se medicalizar isso distribuindo remédio”, acrescenta.