Não é de hoje que o médico Miguel Nicolelis se aventura pelos rumos da ciência para desvendar questões que colocam em xeque o entendimento do corpo humano e do mundo ao seu redor. Embora sua área principal de atuação seja a neurociência, foi no Consórcio Nordeste que ele encontrou a possibilidade de gerenciar um Comitê Científico a fim de combater o que talvez seja a maior crise de saúde do último século.
A dissipação do coronavírus na região e a falta de diálogo entre os governos estaduais e o Governo Federal fez com que os estados do Nordeste formalizassem a criação do colegiado em 30 de março. De lá para cá, as ações do Comitê têm sido importantes sugestões nas tomadas de decisão realizadas nos estados, inclusive no Ceará.
Em um cenário no qual o próprio governador Camilo Santana não descarta a necessidade de decretrar um lockdown (bloqueio total) da circulação de pessoas, o cientista avalia a necessidade da medida. Confira entrevista exclusiva:
O Ceará já chegou a 539 óbitos e mais de 8 mil casos confirmados da Covid-19, quase 80% se concentram em Fortaleza. É o momento de se pensar em um lockdown na cidade ou no Estado?
Essa é uma avaliação que tem que ser feita diretamente por quem está na trincheira em Fortaleza, eu não tenho condição de avaliar isso nesse instante porque os dados necessários ainda não chegaram para análise, mas é uma decisão para ser tomada localmente. A minha opinião pessoal é que nos estamos chegando perto de decisões como essa em algumas capitais do Brasil. Eu acho que temos que encarar isso de frente, pode ser a nossa unica solução a curto prazo.
Dados de localização por celulares apontam para uma queda no índice de isolamento no Estado. Atualmente, o Ceará tem 57,9% nesse índice. O que a redução pode provocar?
A gente tem visto uma queda acentuada do isolamento social e isso precisa ser revertido o mais rapidamente possível, é a única ferramenta eficaz que temos hoje para combater o coronavírus. Se as pessoas ficarem em casa, a gente diminui o número de infectados e com isso diminui o número de óbitos e evita-se a sobrecarga dos sistemas de saúde. Quando se simula o isolamento com 75%, o efeito de reduzir o número de pessoas que precisam de hospitais; quando chega em 60%, a coisa começa a ficar mais difícil. Abaixo disso e abaixo de 50%, é muito desafiador. Não ha sistema de saúde no mundo que consiga dar conta.
Como o senhor avalia o cenário da Covid-19 no Ceará e no Nordeste?
Estamos vendo o espalhamento dos casos nos bairros de classe média alta, que foram trazidos para o Brasil pelos aeroportos internacionais, que agora esses casos estão migrando para a periferia das metrópoles e começando a aparecer no interior dos estados. Identificamos 112 sub-regiões do Nordeste (20 no Ceará) que merecem atenção total para que elas não tenham explosão de casos.
Para esses locais, o Cômitê sugeriu o uso da Brigada Emergencial de Saúde, formalizada nesta semana. Como ela deverá funcionar?
A Brigada é uma forma de conectar tudo que a gente vai obter de dados do (aplicativo) MonitoraCovid-19 e todas as outras análises que estamos fazendo. Ela é uma solução audaciosa, nova, rápida, eficiente e que vai permitir aumentar o número de médicos primários no Nordeste em 15 mil. Se nós pudermos recrutá-los, nós dobramos o efetivo médico da região num momento agudo em que a gente precisa de todas as pessoas qualificadas. Não interessa se o diploma delas é daqui do Brasil ou da Espanha. Essas pessoas aprenderam medicina em faculdades qualificadas e esse é um momento de emergência, em que precisamos pensar nas pessoas para salvar.
Em Fortaleza, casos da Covid-19 já foram confirmados em todos os bairros e há letalidade de quase 30% na periferia. Por que isso acontece e como mudar?
Provavelmente, as pessoas estavam deixando de procurar ajuda médica ou indo muito tarde. Então não havia relatos de casos, mas de óbitos nesses bairros de Fortaleza. Evidentemente, as pessoas também têm mais dificuldades de fazer isolamento social, de buscar o médico, estão mais assustadas, e algumas não tem informação de que podem procurar o médico mais cedo. Essa é uma das preocupações que estamos colocando como prioridade para a Brigada. Agentes de saúde e médicos de família têm que visitar as pessoas nos bairros para medir a saturação do oxigênio in loco, antes que os casos fiquem mais complicados e antes que essas pessoas contaminem seus parentes e vizinhos.
Atualmente, o Ceará dispõe de 483 leitos de UTI e 1.553 de enfermaria em todo o Estado. Eles são suficientes para o que está por vir?
Ouvi o próprio governador (Camilo Santana) falar que eles estão num esforço muito grande pra tentar ampliar esses números - e eles sabem que precisam ser ampliados. Acho que isso é uma equação muito clara porque esses leitos públicos não são suficientes. Mas existe o problema da subnotificação, e isso nos atrapalha demais. Não sabemos quais são os números reais (de casos), pois só temos os que o Ministério da Saúde provê, mas sabemos que está muito subnotificado e, então, decidimos fazer novos modelos para adaptar aos dados de UTIs disponíveis.
O Comitê Científico já sugeriu o aplicativo, a Brigada, a manutenção do isolamento social. Há outras políticas públicas que foram propostas?
Já fizemos a recomendação de redução de ônibus intermunicipais e interestaduais (regulamentada no Ceará); essa foi uma decisão que precisa ser mantida e continuamente renovada porque a gente não pode relaxar. Também propomos a desinfecção de áreas públicas e de veículos de transporte para evitar que o vírus fique disponível para infectar pessoas em áreas de grande concentração (adotada pela Prefeitura de Fortaleza em algumas áreas da cidade). Mas a gente realmente apela para que o Monitora Covid-19 seja implementado no Ceará, mesmo que não se use a telemedicina, pois é preciso coletar os dados para que a gente consigar mantê-los mais apurados para o Estado.
No âmbito do tratamento da Covid-19, o Ceará já utiliza a hidroxicloroquina e a cloroquina em pacientes. Qual a posição do Comitê sobre o assunto?
Fizemos essa discussão da cloroquina internamente e convidamos colegas do Brasil e do mundo. E o consenso é claro: não existe efeito demonstrado nenhum, pelo contrário, a cloroquina tem um risco de morte que não é razoável, não é pequeno. Certos pacientes no Brasil vieram a falecer por se automedicarem depois que a droga ficou popular; as pessoas tiveram infartos fulminantes e não conseguiram se recuperar. Nós deixamos muito claro que essa é um posição científica, não é só uma posição teórica, ela foi debatida com intensivistas, clínicos e infectologistas, que veem pacientes diariamente. Ocorre que, no Brasil, houve pressão muito forte nas redes sociais, e isso é um absurdo. Medicina não é decidida por votação nas redes sociais.
Além do coronavírus, também estamos no momento de dissipação de casos de outros vírus respiratórios e das arboviroses. Como lidar com essa situação concomitante?
A minha grande preocupação é exatamente essa, a convergência de todas essas endemias no mesmo período do coronavírus, sendo que a gente ainda nem chegou no pico da Covid-19. Ainda vamos ter uma explosão muito clara. É só ver na curva que os óbitos diários estão aumentando todos os dias. É um ponto extremamente preocupante e que esta sendo discutido imensamente todos os dias no nosso Comitê.
E a saída da quarentena? Já é possível prever quando vai acontecer?
Tocar nesse assunto agora é criar uma confusão desnecessária. Eu não acho prudente e aconselhável discutir nesse momento porque a gente não tem esse horizonte. Ninguém consegue prever no Brasil, assim como nos EUA, na Grã-Bretanha. Acho que essa discussão é prematura e ela só divide a atenção da sociedade. Nossa prioridade agora é salvar pessoas.