Enfermeira cearense cria 'prontuários afetivos' e humaniza tratamento de pacientes com Covid no DF

Placas fixadas nos leitos mostram gostos musicais, hobby e até traços da personalidade de pessoas intubadas

Um prontuário médico que inclui time de futebol do coração, música preferida, hobby e traços da personalidade do paciente. A ideia, de tão lúdica, parece irreal, mas foi implementada pela enfermeira cearense Domitília Bonfim, 37, em um hospital estadual de Brasília, para humanizar o tratamento de pacientes com Covid-19.

Orgulhosa ao se definir como “cearense raiz”, a mestre em Enfermagem nascida no município de Crateús se mudou para o Distrito Federal em 2006 para trabalhar, e hoje atua no Hospital Regional do Guará, na região administrativa do DF.

A ideia de criar os “prontuários afetivos” surgiu de uma colega, a médica reumatologista Isadora Jochims, e logo foi abraçada e implementada por Domitília na unidade de saúde estadual.

Em entrevista ao Diário do Nordeste, a enfermeira cearense explica os efeitos da humanização do tratamento tanto para os pacientes como para os profissionais de saúde.

Como surgiram os prontuários afetivos? Qual a ideia deles?

Eu gosto de trabalhar nessa linha da humanização, sempre gostei, tem tudo a ver comigo. Por isso, quando a Isadora publicou, me tocou, me identifiquei. Imprimi na minha casa, cortei corações de papel, colei e saí ligando pras famílias.

O prontuário afetivo tá se desdobrando: começou de forma lúdica, simples, escrevia a próprio punho com a minha letrinha. E agora tá ficando uma coisa mais linda do que eu poderia imaginar.
Domitília Bonfim
enfermeira

Que impactos essa ação pode ter no tratamento do paciente?

Existem relatos na literatura de que o último sentido que a gente perde, fisiologicamente, é a audição. Vivi isso com o meu sogro: conversei com ele, já torporoso, e vi as lágrimas escorrerem.

No dia a dia, a gente percebe o paciente intubado e sedado pelo monitor cardíaco. Quando está com febre, com dor, ele não consegue falar, mas a gente vê no monitor. Já é hábito identificar esses sentimentos de dor e sofrimento pelo parâmetro cardíaco.

Quando interagimos, chegamos no ouvido dele e falamos essas informações sobre ele, do time, dos filhos, a equipe visualizou as alterações no monitor cardíaco. Eles respondem pelo coração.

Quais os desafios de garantir uma prática humanizada no contexto da pandemia?

A equipe está cansada, estressada. O primeiro enfermeiro da rede do Distrito Federal que foi a óbito era meu colega de plantão. A equipe também tem familiares que estão partindo, está ficando órfã. Tá muito difícil. É uma catástrofe: nenhum serviço de saúde do mundo aguentou, e aqui não seria diferente. 

Muitas vezes a equipe tem a vontade, mas não tem energia. E a gente tem que interceder. Quando pensei no prontuário afetivo, eu não queria levar essa tarefa a mais pra eles: plantei a sementinha, esperei a resposta, e pedi apoio à psicologia pra dar continuidade.

Comecei a ouvir coisas como ‘nossa, isso me deu um gás, eu tava tão cansado, sem esperança; e fazer meu trabalho olhando pra esse prontuário, ver que a pessoa tem duas filhas adolescentes esperando por ela…’

Não é que a equipe não saiba dessas informações, mas com a pandemia a gente se afastou muito da família, não tem mais contato pele a pele, é só por telefone e boletim médico. Então todo mundo se comoveu, e o prontuário reforça que ali é um ser humano, pai de família, mãe, avó de 20 netos.

“O prontuário reforça que ali é um ser humano”

Como eu coletei essas informações, a gente se envolve com todas as famílias. A gente escuta cada voz embargada, choro, um apelo, agradecimento. Não tem como não se emocionar.

Como lidar com os próprios sentimentos e saudades nisso tudo?

Meus pais são idosos, e tenho medo de enfrentar o aeroporto e levar o vírus pra eles. Nunca passei tanto tempo sem ver minha família, sem tocar. Tenho uma filha de 8 anos que me fala que tá com saudade dos avós, do cheiro de Fortaleza. Ela disse que Fortaleza tem um cheiro, e que tá com saudade dele. É muito difícil.

Arte no ambiente hospitalar

Mesclar informações técnicas da Covid-19 a traços pessoais dos pacientes, além de humanização do tratamento, foi uma “estratégia de sobrevivência” idealizada pela médica reumatologista Isadora Jochims.

Além de profissional de saúde, ela é artista visual, habilidade desenvolvida justamente em um momento de alta sobrecarga de trabalho, que a levou a uma Síndrome de Burnout, em 2016.

A arte é uma forma de sublimar os sofrimentos que a medicina me traz.
Isadora Jochims
médica e artista visual

Originalmente médica ambulatorial, Isadora foi convocada à linha de frente de combate à Covid no ano passado, e tem convertido o medo e as vivências dolorosas dela e de colegas em materiais artísticos.

Alguns profissionais, segundo relata Isadora, não se sentiram confortáveis com as intervenções, porque prefere se “afastar” da história para conseguir lidar. “Mas como você vai cuidar de uma pessoa sem saber quem ela é?”, questiona a médica.