Com o avançar da vacinação, felizmente, as mortes por Covid tem recuado no Ceará. Mas o dia a dia segue marcado por lutos devido à doença. Histórias individuais que, agregadas, dão forma a uma tragédia de inúmeras dimensões. Na saúde, desde 2020, o Estado, assim como outras regiões do país, registra “excesso de mortalidade”. Na prática, é o fato de só em 2021, até o início de setembro, terem ocorrido, por exemplo, 22,9 mil mortes naturais (em decorrência de doenças) além do esperado para esse período no território cearense.
Todos os anos, na área da saúde, com base em séries históricas, é possível dimensionar com cálculos epidemiológicos, a quantidade de mortes naturais esperadas para uma determinada região em um certo intervalo de tempo. Com base nos registros oficiais, calcula-se a diferença entre o que era previsto e o que realmente ocorreu.
O resultado encontrado pode evidenciar, por exemplo, quão frágil é a condição das unidades de saúde naquele espaço de tempo na qual excessivos óbitos ocorreram de forma muito rápida.
Geralmente, é dessa forma que gestores como governadores, prefeitos e secretários de saúde têm uma certa perspectiva de como foi o cenário epidemiológico e traçam o que pode ser feito.
Confira situação de cada região
No caso da Covid, esse é um dos pontos a ser monitorado, inclusive em 2022, pois, os gestores já sabem exatamente quando houve o excesso de óbitos e a dinâmica dessa elevação em 2020 e agora, em 2021. Portanto, um dos efeitos é ter a capacidade de fazer prognósticos de como poderá ser e preparar a assistência adequada.
Entenda os conceitos usados na epidemiologia para o cálculo
- Excesso de mortalidade: indicador que mede o impacto de doenças epidêmicas, desastres e guerras na mortalidade populacional e a capacidade da política pública de prevenir.
- Cálculo do excesso: para definir o quanto é esse excesso é feita a subtração entre os óbitos por causas naturais registrados e os esperados, com base na série histórica anterior.
- Mortes por causas naturais: aquelas provocadas por doenças, como as cardiovasculares, câncer, respiratórias. A conta não inclui os óbitos por acidentes ou violência.
Indicativo da dimensão da tragédia
O acréscimo expressivo de mortes é um dos dados que mais evidencia o impacto da pandemia. Somente no Ceará, conforme o painel criado pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), disponível desde agosto de 2020, no ano passado, com base na série histórica de 2015 a 2019, estimava-se que ocorreriam 50.183 mortes naturais. Mas, aconteceram 18.621 óbitos a mais.
Já em 2021, até a semana epidemiológica 35 (até o dia 4 de setembro), a estimativa era de que o Estado teria 33.331 mortes naturais, mas já ocorreram 22.905 óbitos acima dessa quantidade. Em termos proporcionais, o Ceará, em 2021 teve o 9º maior excesso de mortalidade entre os estados brasileiros até o momento. O maior dentre as unidades do Nordeste.
Os cálculos do painel incluem os óbitos esperados, entre 2015 e 2019, projetados com base nos dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde e os observados, cuja base de dados é o Portal da Transparência do Registro Civil, da Central de Informações do Registro Civil (CRC).
Nem todas essas mortes foram por Covid, contudo, a pandemia é apontada como a grande justificativa.
Quando lançou a ferramenta, o Conass defendeu que, acompanhar os indicadores de morte é uma estratégia recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para que, em momentos como este, seja possível avaliar os efeitos diretos e indiretos da crise sanitária.
Aumento na segunda onda
Se em 2020, o acréscimo foi expressivo, esse ano, o excesso se amplificou no Ceará quando analisados os dados proporcionais. Em meio, a multidão de enlutados, o contador Felipe Lima, morador de Fortaleza, sofre a perda da avó, vítima da Covid na segunda onda. A idosa, de 86 anos, que “era bem ativa”, conforme descreve o neto, morreu em março.
“Ela se infectou bem no início da vacinação, chegou a tomar a primeira dose, inclusive, foi internada no Hospital Nossa Senhora da Conceição, no Conjunto Ceará. Ficou seis dias internada no isolamento e mais 9 dias na UTI”.
O excesso de mortalidade, que para a saúde, quando ocorre de forma muita rápida e concentrada em determinadas semanas, evidencia o colapso das unidades, na vida de Felipe se reflete em: “alguns amigos próximos perderam pais, avós e tios com um pouco de mais de idade”. Incontáveis perdas.
Para seguir, relata Felipe, é preciso “reaprender a viver, a dar seguimento nos projetos individuais devido à necessidade de trabalhar, a conviver com as pessoas de forma remota e fazer disso uma oportunidade de se ouvir mais e estar até mais atento ao outro”.
A sensação sobre a perda da avó, acrescenta, é “um misto de insegurança, por saber que ninguém estava livre de ter o mesmo fim, com o sentimento de revolta por ter perdido ela para uma doença que já existia a vacina e o governo protelou”.
O que gestores precisam fazer?
A epidemiologista e consultora-sênior da organização global de saúde pública, Vital Strategies, que desenvolveu o método do cálculo do painel do Conass, Fátima Marinho, explica que os gestores públicos têm ferramentas para se prepararem para 2022.
“Tem que prestar atenção nos períodos de pico. Em 2021, ele (pico de óbitos) já se ajusta à sazonalidade das doenças respiratórias. Tem que se preparar para o próximo pico. Ele provavelmente vai ocorrer nessas mesmas datas no próximo ano, mas com a subida já no início do ano”.
Conforme o painel do Conass, em 2020, o Ceará teve o maior excesso de mortalidade na semana epidemiológica 20 (entre o dia 10 e 16 de maio) período no qual eram esperadas 1.096 mortes naturais, mas ocorreram 2.709. Em 2021, esse pico ocorreu na semana 14 (entre o dia 4 e 10 de abril), com 2.497 óbitos quando eram projetados 899 naquele intervalo.
Fátima acrescenta que, no próximo ano, o Ceará provavelmente terá condições semelhantes às de 2021 no sentido de aumento do turismo nacional e, consequentemente, da circulação viral. Embora, destaca ela, haja o avanço da vacinação também. Além disso, reforça, em 2020 e 2021 o vírus da influenza circulou pouco. A estimativa, afirma, “é que volte a circular em 2022”.
"Agora, com a redução da circulação do novo coronavírus, os vírus da influenza vão voltar a circular mais intensamente. Pode esperar um pico. Gestores têm que se preparar. Já ocorreu duas vezes, não pode ocorrer a terceira.", ressalta. O tamanho do excesso de mortes, afirma, “vai depender muito das ações anteriores”.