Dia da Não Violência: como denunciar e expor a violência doméstica pode contribuir para prevenção

Ampliar canais de apoio a vítimas é um dos caminhos para evitar novos casos – mas maior estratégia é a educação

A reportagem ideal para o dia 2 de outubro, Dia Internacional da Não Violência, seria sobre cultura de paz, mediação de conflitos, conciliação. Mas para alguns grupos, como as mulheres, por exemplo, a realidade é de violência. A guerra se impõe todo dia.

A cada meia hora, uma cearense denuncia violência doméstica. Entre iniciativas que buscam ampliar os canais de apoio, os casos se multiplicam, mostrando que somente expor as violações não é suficiente para combater o surgimento de novas vítimas.

“É um problema estrutural, alicerçado na própria História. Está longe de ser resolvido, porque precisamos agir na raiz”, define Socorro Osterne, professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e membra do Observatório de Violência Contra a Mulher (Observem).

Denunciar, ela frisa, “é importante, claro, e ampliar os canais de apoio às mulheres é uma ação promissora”. Mas para que se chegue, de fato, à “não violência” é preciso “ações profundas e bem articuladas”, como complementa a pesquisadora.

A estratégia mais importante vai na questão da cultura, do conhecimento, da educação, da divulgação do saber. Algo que desmonte o patriarcado, a ideia de superioridade masculina. As mulheres precisam ser livres para haver uma sociedade democrática.

A professora explica que a violência doméstica pode ser praticada contra familiares, crianças, adolescentes e idosos, mas que a mais “conhecida”, predominante e chancelada por uma sociedade machista “é a conjugal, cometida por parceiros a todo instante”.

Socorro pontua ainda que, além do aparato judicial para providências contra o agressor, é necessária uma retaguarda de acolhimento e preparação à mulher em situação de violência: “porque se os canais de denúncia conseguissem resolver, com a Lei Maria da Penha já teríamos erradicado o problema”.

Precisamos insistir e trabalhar nos vetores: quem dá sustentação à dominação masculina e à violência contra a mulher? A própria família, muitas vezes; a escola, muitas ainda sob uma educação conservadora; as igrejas fundamentalistas; e a própria mídia.

‘Qual o papel da sociedade?’

A professora universitária, pesquisadora de violência de gênero e mestra em Direito, Geórgia Oliveira, pontua que “são necessários, sim, canais seguros para que as mulheres consigam denunciar e expor”, mas que pensar em assistência social deve ser prioridade.

“A mulher precisa de apoio psicológico e para sair da dependência financeira, por exemplo. Quando há mecanismos de assistência social, que busquem a interrupção de todo o contexto, existe uma possibilidade muito maior de interromper os ciclos de violência”, avalia.

Esse apoio deve vir por meio de políticas públicas, mas também da sociedade, que precisa ter papel ativo no combate à violência doméstica. “Muito se fala que a mulher precisa buscar ajuda, mas qual o nosso papel enquanto sociedade de oferecer escuta, orientação, fazer o que pode pra levá-la ao serviço especializado?”, questiona Geórgia.

Precisamos pensar também que a violência doméstica não é só entre casais: há muitas meninas, adolescentes, mulheres lésbicas e transexuais sofrendo isso. É todo um contexto invisibilizado. Perceber essa questão também é muito importante.

Iniciativas impõem ação de todos

No Ceará, medidas sociais ou legais tentam ampliar as possibilidades de auxílio às mulheres e impor uma postura ativa da sociedade diante de casos de violência. 

Um projeto de lei que tramita na Câmara Municipal de Fortaleza, por exemplo, pretende obrigar síndicos e administradores de condomínios a denunciarem casos aos órgãos de segurança pública.  

Outro dispositivo legal, mas que já entrou em vigor ontem (1º) no Ceará, a Lei nº 17.677 institui “o recebimento de comunicação de violência doméstica e familiar por intermédio de farmácias e outros estabelecimentos prestadores de serviço”.

Além deles, desde agosto, hospitais do Ceará passaram a ter ferramenta de comunicação direta com a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), para que casos de violência contra a mulher atendidos na rede de saúde sejam prontamente notificados.

“Somos vistas como objetos de cama e mesa”

Para Daciane Barreto, coordenadora da Casa da Mulher Brasileira (CMB) de Fortaleza, o que falta é a Lei Maria da Penha, eleita pela Organização das Nações Unidas (ONU) como a 3ª melhor do mundo, ser implementada “em sua integralidade”.

A Lei Maria da Penha não é só punitivista. Ela coloca a luta pela prevenção, pela punição e pela eliminação da violência. Mas ainda estamos muito longe disso.

Numa sociedade “patriarcal, machista, classista, racista, homofóbica e que prima pela desigualdade de gênero”, segundo descreve Daciane, a tarefa de difundir e fortalecer a cultura de não violência às mulheres se mostra “muito difícil”.

Segundo a coordenadora, essa tentativa é um dos pilares da CMB, mas ainda esbarra em obstáculos persistentes. “A discussão sobre gênero nas escolas também é uma necessidade básica do enfrentamento à violência, mas é criminalizada no Brasil”, critica.

Ainda somos vistas como objetos de cama e mesa. Temos que trabalhar nas universidades, comunidades, empresas e escolas campanhas continuadas, no sentido de transformar a consciência atual da sociedade.