Denúncias de racismo crescem 77% no Ceará em 2021; ocorrências podem ser registradas pela internet

De janeiro a julho de 2020, Estado somou 31 denúncias do tipo; neste ano, número subiu para 55

As denúncias de discriminação racial no Ceará cresceram em 2021. De janeiro a julho deste ano, o Estado contabilizou 55 denúncias por crime de racismo, número 77,4% superior à quantidade registrada (31) em igual período do ano passado. Nos primeiros setes meses de 2021, também foram formalizadas 51 denúncias de injúria racial no Estado, elevando em 50% o total verificado (34) entre janeiro e julho de 2020.   

Os dados foram extraídos pela Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp/CE), a pedido do Diário do Nordeste, e fornecidos pela Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará (SSPDS/CE), órgão ao qual a superintendência é vinculada.   

As 55 denúncias por crime de racismo somadas até 31 de julho de 2021 praticamente alcançaram o mesmo patamar de todo o ano de 2020, quando 58 casos do tipo foram relatados.

Já as denúncias por injúria racial avançaram em um ritmo mais lento este ano. De janeiro a dezembro do ano passado, houve 93 denúncias do tipo, quantidade ainda bem acima das 51 reunidas até o fim de julho.  

Coordenadora de Operações Integradas (Copol) da SSPDS, a delegada Socorro Portela atribui o incremento das denúncias de discriminação racial à disponibilidade da Delegacia Eletrônica (Deletron), da Polícia Civil do Estado do Ceará (PC-CE). Com a pandemia de Covid-19, desde maio é possível fazer esse tipo de denúncia pela plataforma.  

“Antes não havia a possibilidade de um usuário registrar essas ocorrências por meio do Boletim [de Ocorrência] Eletrônico, somente na delegacia. Então, como a gente inseriu na Delegacia Eletrônica essa opção de você registrar esses tipos de crime, houve esse aumento. As pessoas passaram a registrar [as denúncias] em suas residências, em seu trabalho, pela internet”. 

O Boletim Eletrônico de Ocorrência (BOE) pode ser feito na Deletron em qualquer horário do dia ou da noite, em todo o Estado do Ceará. Logo após o registro e aprovação dos BOEs, frisa a delegada, a ocorrência é transferida para a delegacia responsável, que inicia as investigações.  

A Polícia, na maioria das vezes, toma conhecimento de um crime por meio do Boletim de Ocorrência. Por isso, é importante a população registrar o boletim porque isso também vai direcionar a atuação da polícia naquela região”
Socorro Portela
Coordenadora de Operações Integradas da SSPDS

Nos primeiros sete meses de 2017, a SSPDS somou 105 denúncias de injúria racial. O número supera em mais de duas vezes as 51 ocorrências informadas em igual período de 2021. Na opinião da delegada, isso reflete um comportamento das vítimas, que optam muitas vezes por não levar o caso adiante. 

“O que posso dizer é que as pessoas denunciem. [Discriminação racial] é crime, é crime grave, que traz sofrimento pras pessoas. Para que a polícia investigue, é preciso que haja esse registro na delegacia, numa unidade presencial, ou na delegacia eletrônica”. 

Racismo x Injúria racial 

Embora o crime de racismo e a injúria racial possam ser enquadrados como discriminação racial e ensejar responsabilidades penais, os conceitos jurídicos de ambos são diferentes.   

O crime de racismo está previsto na Lei 7716/1989 e implica uma conduta discriminatória que, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), “atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça”. 

Dificultar a promoção funcional de alguém por motivo de discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional é um exemplo de crime de racismo. Ao contrário da injúria racial, o racismo é inafiançável e imprescritível.  

A injúria racial, por sua vez, está prevista no parágrafo 3º do artigo 140 do Código Penal. Conforme o CNJ, esse crime “consiste em ofender a honra de alguém, valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem”.   

Caso se caracterize a ofensa à dignidade do indivíduo baseada nos elementos acima mencionados, a lei estabelece a pena de reclusão de um a três anos e multa. Além da pena correspondente à violência, para quem venha a cometê-la. 

“[O racismo é mais amplo] porque você direciona a ofensa a um grupo maior de pessoas. A injúria racial é a uma só pessoa ou a um grupo de pessoas determinado. Quando você vê um grupinho passando na rua e solta alguma ofensa, alguma discriminação racial, aí seria injúria. Agora se você xinga todo o povo indígena, aí seria crime de racismo”, diferencia a advogada Lorena Duarte, membro da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil - Secção Ceará (OAB-CE).  

"Não dá em nada"

Apesar do aumento de denúncias contra esses crimes no Ceará, quantitativamente os números ainda são baixos, considerando a população estimada do Estado – mais de 9 milhões de habitantes. Em fevereiro, por exemplo, não houve sequer uma denúncia de racismo. Para a advogada, isso reflete a descrença das pessoas quanto a um retorno positivo e efetivo das denúncias.  

Eu acredito que fica mais nesse sentido de que ‘não dá em nada’. Você denuncia e aí vê que não vai dar em nada aquela denúncia. E muita gente não tem assistência jurídica, infelizmente. A maioria não tem, e aí fica complicado”
Lorena Duarte
Advogada

Conhecido no meio artístico cearense como MC Kaska (KSK), o beat maker e produtor musical independente Valmir Rodrigues Junior, 27, revela sentir na pele o racismo, desde a infância.  Apesar de ser alvo de discriminação por diversas vezes, nunca denunciou, justamente por pensar na burocracia envolvida e que não obteria a justiça desejada.

"Eu sei que eu deveria ter denunciado, mas naqueles tempos antigos eu achava que tudo era muito burocrático pra fazer esse tipo de denúncia e pensava que não ia dar nenhum resultado. Então todas as coisas que aconteceram eu fui só deixando pra lá e nunca denunciei".

MC Kaska se percebeu vítima de racismo pela primeira vez aos 9 anos. Na ocasião, seu pai - que é branco - foi dispensado de um emprego de caseiro por ter filho e esposa negros. Durante a adolescência, o também articulador social foi acusado de furtar um celular de um colega de sala, cuja mochila escondia o aparelho.   

"Depois disso também já aconteceu de eu estar num shopping e o segurança ficar me seguindo insistentemente, como se eu tivesse fazendo alguma coisa errada, como se eu não pudesse transitar num espaço de lojas, olhar as coisas. Sempre aconteceu isso". 

Enquanto crescia, Kaska passou a notar que as pessoas o "olhavam diferente", devido à cor de sua pele. "E isso me fez tipo acordar mesmo e reparar como era, né, véi? Porque tipo, quando a gente é novo, não entende. E é assim que a discriminação vai se espalhando". 

Apesar de não ter realizado nenhuma denúncia ao longo da vida, ele defende que os novos canais disponíveis para isso devem, sim, ser utilizados.

"Se tivesse esses canais facilitados antes, eu teria denunciado muitas coisas que eu passei, mas eu não tinha esse acesso. A minha dica pra quem passa por uma situação dessa, ou que vem passando por isso é que não se cale, não se reprima, não tenha medo, denuncia. Faça a denúncia, vá atrás dos seus direitos e juntos a gente vai vencer todo esse preconceito que tá na sociedade". 

As pessoas que comprovadamente não têm condições de pagar um advogado, indica Lorena Duarte, podem solicitar o acompanhamento jurídico da Defensoria Pública do Ceará (DPCE). Ou procurar um advogado que atue com prestação gratuita de serviços jurídicos (pro bono). 

“As pessoas mais vulneráveis podem procurar os grupos de apoio também. A realidade é que, se não tiver alguém pressionando, realmente tem a lentidão [judicial] e tem a questão da prescrição né? No caso do crime de racismo não, é imprescritível. Mas o crime de injúria racial prescreve [em oito anos]”. 

“Mais coragem” para denunciar 

Para o professor e pesquisador da história e cultura negra no Ceará, Hilário Ferreira, o aumento das denúncias por discriminação racial tem diferentes justificativas. A primeira, é que as pessoas estão com “mais coragem” para prestar queixa dessas ocorrências. A segunda, é porque meios como o próprio Boletim Eletrônico de Ocorrência permitem que essas denúncias se materializem. 

A implementação de políticas públicas em governos anteriores e a possibilidade dos casos aparecerem em tempo real nas redes sociais, acrescenta o professor, também evidenciaram o racismo. Embora ainda exista um projeto político, arvorado nas instituições do Estado, que se proteja, negando a existência do racismo estrutural no Brasil. 

"A riqueza desse País tem cor, assim como a pobreza, e investe constantemente na impossibilidade de que as pessoas, grande parte da população ou da sociedade brasileira reconheça ser racista", afirma, argumentando que a negação do racismo acaba por se refletir na lei.

Negação do racismo

"A criação do discurso de injúria racial quer, por estratégia do sistema, impedir o reconhecimento de que a sociedade brasileira é racista. Quando se fala de racismo, se fala de coletividade. Quando se fala de injúria racial, estamos falando de individualidade. E, na verdade, se aprofundarmos o ponto de vista antropológico e sociológico, toda injúria do ponto de vista racial é coletiva porque quando o racista diz: ‘negro safado’, essa palavra 'negro' refere-se a todas as pessoas que têm as mesmas características fenotípicas daquela pessoa" que foi agredida.

"E esse mesmo discurso aparece aqui em Fortaleza, em São Paulo, no Maranhão, no Pará, então é um discurso da coletividade. Toda injúria racial é um racismo disfarçado. A questão é que é perigoso eu assumir que a sociedade brasileira é racista, então eu tenho que continuar camuflando".