Deficiência em matemática desafia alunos da rede pública no Enem

Cearenses de escolas municipais e estaduais ainda têm desempenho nivelado como "crítico" pelo Spaece, principal sistema de avaliação local, e precisam de melhor estrutura escolar para alcançar bons resultados em matemática. Especialistas apontam novas metodologias para superar problema histórico

Falta de apreço, de paciência, de habilidade? De base. De estrutura escolar. Além da tensão natural a quaisquer candidatos do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), estudantes da rede pública cearense precisam driblar, ainda, uma deficiência histórica: o baixo nível de aprendizado em matemática, que chega a ser considerado "crítico" entre alunos do 3º ano do Ensino Médio (EM). Para especialistas, é preciso investir na formação de professores e em novas metodologias de ensino.

De acordo com os resultados do Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica do Ceará (Spaece) referente a 2018, os níveis de proficiência em matemática ficam mais baixos conforme os estudantes avançam de série. No 5º ano do Ensino Fundamental (EF), das nove regiões e 742 alunos avaliados, apenas em Fortaleza eles obtiveram desempenho "adequado". Em Canindé, Baturité e Crateús, o resultado foi "intermediário". Já em Maracanaú, Itapipoca, Acaraú, Tianguá e Tauá foram nivelados como "críticos".

No 9º ano do EF, mais de 8 mil alunos de 12 regiões do Ceará foram avaliados: nenhuma das localidades teve desempenho "adequado", e apenas Juazeiro do Norte aparece com proficiência "intermediária". A Capital e mais sete regiões (Maracanaú, Itapipoca, Tianguá, Canindé, Baturité, Crato e Brejo Santo) tiveram resultado "crítico", e outras três (Acaraú, Crateús e Tauá) apresentaram padrão "muito crítico".

A situação é ainda pior no 3º ano do EM: neste nível de ensino, todas as regiões do Estado foram avaliadas - e todas obtiveram padrão de desempenho crítico, conforme os dados do Saeb 2018. Quase 90 mil alunos participaram da prova de avaliação. O cenário só não é pior do que o verificado na Educação de Jovens e Adultos (EJA) - EM, cuja proficiência em matemática teve nível "muito crítico" em todos os locais avaliados, contando com quase 4 mil alunos

Enem

Um levantamento da plataforma Qedu, da Fundação Lemann, apontou, ainda, a discrepância entre médias de alunos de instituições públicas e privadas em matemática. Com base nas notas do Enem de 2017, verificou-se que apenas 11 de 133 escolas públicas (das quais três militares) obtiveram notas acima de 500 na disciplina, sendo 463 a média geral. Já entre as 134 sedes da rede privada mapeadas, a maioria das notas é acima de 600, algumas ultrapassam 800, e a média geral é 580 pontos.

Para Iane Nobre, coordenadora de Gestão Pedagógica do Ensino Médio (Cogem) da Secretaria Estadual da Educação (Seduc), trabalhar a matemática de forma mais contextualizada e "concreta" é, ao mesmo tempo, desafio e saída possível para melhorar o desempenho de alunos. "Se a disciplina não for trazida aos usos cotidianos, ela ganha o caráter que faz os alunos rejeitarem, acharem difícil e não quererem estudar. Mas essa vertente conteudista não é fácil de quebrar", reconhece.

A deficiência que acompanha os alunos até o ensino médio, segundo Iane, se justifica pela "falta de base, pois aprenderam mal ou não aprenderam nas etapas anteriores". A ideia é ratificada por Wesley Rocha, gerente da Célula de Desenvolvimento Curricular da Coordenadoria de Ensino Fundamental (Coef), da Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza (SME).

"O mito em relação à matéria e à formação de professores são os principais fatores para a dificuldade, que se constrói desde a base. Nos anos iniciais, quem leciona são pedagogos, só a partir do 6º são especialistas. Por isso, a SME vem desenvolvendo ações específicas para formar esses profissionais em matemática", afirma, citando programas de ampliação de jornada, com aulas de português e matemática no contraturno, como medidas para melhorar os resultados.

A formação de professores e da equipe pedagógica da rede estadual, segundo Iane, "é o que a Seduc pode fazer de mais concreto e que tem maior impacto nas salas de aula". Quanto a contornar os baixos desempenhos para que estudantes tenham bons resultados no exame nacional, a coordenadora aposta nos programas "Enem, Chego Junto, Chego Bem", "FDS Curtindo o Enem" e "Agenda Zero", que ofertam reforços e aulões nos contraturnos, fins de semana e férias para preparar os candidatos.

Investimentos

Na análise de Juscileide Braga, doutora em Educação e professora do Departamento de Teoria e Prática do Ensino da Universidade Federal do Ceará (UFC), a dificuldade em matemática é democrática: atinge crianças, jovens e adultos, de todo o País. Mas a melhor estrutura da rede privada distancia estudantes e dissolve a equidade.

"O contexto social, econômico e político também influencia. Numa sala quente, com um ventilador funcionando, será que os alunos prestam atenção na aula ou estão preocupados em amenizar o desconforto? Na escola particular, se o aluno tem dificuldade, à tarde ele tem um monitor pra tirar essas dúvidas. Na rede pública, o professor não pode parar e fazer o trabalho individual. O que fazer com quem não consegue acompanhar o conteúdo?", provoca Juscileide.

Os fatores que agravam esse cenário perpassam a formação profissional e a adoção de novas metodologias, sim, mas podem ser atribuídos também à falta de investimento. "Precisamos ter muito cuidado ao dizer que a culpa é da base: não é o caso. Os melhores índices são nos anos iniciais, por que isso não continua ao longo dos anos? As escolas públicas começam a focar em matemática no 3º ano fundamental, isso gera uma lacuna, e os professores precisam acelerar para que os alunos tenham rendimento esperado no Saeb. Mas o trabalho precisa ser continuado. Em matemática, é preciso que o estudante compreenda, e não só memorize".

É por isso e também pelas deficiências na própria língua portuguesa que, na avaliação de Juscileide, os estudantes da rede pública "chegam com dificuldade" ao Enem. "Precisamos de abordagens que façam o aluno pensar. O Enem não foca em fórmulas, traz elementos matemáticos relacionados com situações reais. Como entender um problema se o estudante só foi ensinado a fazer conta?", questiona.

Para Juscileide, as mudanças comportamentais da sociedade impõem novas formatações na rede de ensino, para mitigar os déficits de aprendizagem e o abismo de oportunidades entre as distintas classes sociais. "A sociedade está mudando, a escola precisa acompanhar. Aulas expositivas são muito centradas no professor. Precisamos focar no aluno, para que ele possa ser mais proativo, participativo, canalize a energia para a resolução de problemas de situações reais. O caminho é tentar fazer com que o estudante seja mais importante no processo de ensino e aprendizado", sentencia.