Coveiros relatam cansaço e dor de ver famílias não poderem dar adeus aos parentes mortos por Covid

Com o agravamento da segunda onda da pandemia no Estado, trabalhadores enfrentam nova sobrecarga física e emocional de sepultar mais pessoas

Mesmo acostumados a lidar com a morte, os coveiros têm enfrentado durante a pandemia da Covid-19 uma sobrecarga física e psicológica em suas rotinas de trabalho. Os obstáculos, apresentados em 2020, agora ressurgem com o agravamento da segunda onda da pandemia.

Entre março do ano passado até essa sexta-feira (26), o Ceará contabilizou 13.313 mortes em decorrência da doença infectocontagiosa, sendo 5.770 em Fortaleza. Os dados, disponibilizados na plataforma IntegraSUS, da Secretaria Estadual da Saúde (Sesa), foram coletados às 08h50 de hoje (26). 

Somente nos primeiros 19 dias deste mês, o Estado já registrou mais de 1.000 mortes por Covid-19, sendo mais da metade em Fortaleza. Conforme o Diário do Nordeste publicou na segunda-feira, patamar semelhante foi atingido pela última vez em julho de 2020. 

'Muito triste'

"Ver a forma como a família não pode abraçar, não pode tocar o seu parente e ter uma despedida digna. É um sentimento muito triste", afirma Magno da Silva Pereira. Há cinco dos seus 28 anos de idade, trabalha como sepultador no Cemitério Memorial Fortaleza.  

Com o aumento exponencial de mortes registradas durante a pandemia, a rotina de Magno já não é a mesma. Segundo ele, houve um aumento na quantidade de sepultamentos por Covid-19 em março do ano passado no cemitério. "Mas esse ano está muito maior", compara.

O coveiro Henrique Eduardo Rocha e Silva Neto já tem "meia vida dedicada" ao ofício. De seus 52 anos de idade, 28 são atuando como coveiro. Ele compartilha do mesmo sentimento do Magno Pereira e revela um sentimento nunca antes experimentado.

"Já são quase três décadas nesta profissão. Já fiz enterro de todo tipo de gente, mas nunca vi tamanha tristeza como agora. É muito doloroso perder um ente querido e não poder se despedir dele. A gente fica abalado, tem sido realmente muito triste".

Em alguns casos, conta Henrique, familiares já chegaram a oferecer dinheiro para que o caixão fosse aberto. "A gente sabe que eles só querem dar um último adeus, mas somos profissionais e entendemos os riscos. O caixão vem lacrado e nossa função também é garantir que assim ele seja enterrado".

Um ano de pandemia

Apesar de ter que enterrar mais mortos que o normal, Magno garante que, neste ano, ele e seus colegas de trabalho já estão mais experientes para "lidar com esse tipo de situação". Henrique, no entanto, discorda.

"Não tem como se acostumar. A dor é a mesma. Particularmente continuo sentindo muito pesar desses entes. Ainda bem que ainda não perdi nenhum parente, seria muito triste", pondera.

Com mais da metade da vida dedicada ao trabalho como coveiro em um cemitério de grande porte em Fortaleza, *Jonas (nome fictício), de 49 anos, tem percebido um aumento expressivo de sepultamentos ao longo do primeiro trimestre de 2021.

De acordo com ele, na primeira onda da pandemia, em 2020, a quantidade de pessoas com Covid enterradas no cemitério era de até, no máximo, quatro por dia. Hoje, esse número já chega a 10. "Fevereiro [de 2021] foi quando estourou mesmo [o número de mortos]", ressalta o coveiro.

No Cemitério do Mucuripe, eram em média entre 10 a 15 enterros por mês. "Na pandemia essa média subiu para 30 a 40", revela Henrique. Além do cansaço mental, ele confidencia o cansaço físico. "É puxado, a rotina tem sido intensa. Tanto que ganhamos reforço. Eram dois coveiros, e agora aqui são 4", detalha.

Dor compartilhada

Para Jonas, o mais difícil na nova rotina ainda é ter que explicar a familiares que eles não podem abrir o caixão ou que não é permitido um número maior que 10 pessoas na cerimônia fúnebre. Outra grande dificuldade é ver amigos que fez no próprio cemitério partir.  

"A gente compartilha com a dor das pessoas de perder seus entes queridos, pessoas que estavam bem, que visitavam aqui o cemitério e agora vieram definitivamente para ser sepultadas".

Ele reforça que, ao contrário do que as pessoas pensam, não virou costume sepultar tantas pessoas, todos os dias. "Não é bem assim. Infelizmente, a gente tem que não demonstrar muito [a tristeza] e ser bem profissional". 

A diretora de Recursos Humanos da Rede Memorial Fortaleza, Patrícia Meireles, confirma que 50% de todos os sepultamentos realizados no cemitério, entre 1º a 16 de março de 2021, foram de vítimas do coronavírus.

Porém, a quantidade ainda é menor que a registrada em maio do ano passado, durante o pico da primeira onda. Na ocasião, o percentual de mortos por Covid recebidos no Memorial Fortaleza chegava a 70%. 

"Em janeiro, nós tivemos poucos [sepultamentos por Covid]. Mas em fevereiro, já houve um aumento de 100% em relação a janeiro. E, em março, esse aumento foi de 200%. A gente, com certeza, está vivendo a segunda onda", endossa Patrícia, sem cravar números absolutos.