Como escolas estaduais do Ceará tentam recuperar a aprendizagem prejudicada pelo ensino remoto

Focos de recuperação foram apontados pelo Governo do Estado. Português e matemática representam as maiores defasagens

A volta às aulas presenciais na rede pública estadual tem demandado bem mais do que uma preparação estrutural das escolas para receber alunos e professores em segurança contra a Covid-19. Com déficits de aprendizagem que constantemente têm de ser reavaliados e problemas de saúde mental desenvolvidos e/ou agravados pela pandemia, os estudantes tentam, aos poucos, reatar os vínculos prejudicados pelo afastamento físico da escola. 

Diante dessa realidade, que ainda mescla o presencial com atividades remotas, é fundamental manter uma rotina de avaliações diagnósticas que possibilitem à gestão escolar uma interpretação pedagógica das habilidades e dos conhecimentos que estão mais fragilizados, segundo Jorge Lira, cientista-chefe em Educação Básica e atual diretor do Centro de Excelência em Políticas Educacionais da Universidade Federal do Ceará (UFC). 

De acordo com o especialista, que integra o grupo que analisa as avaliações pedagógicas em âmbito estadual, as fragilidades que atualmente desafiam a rede de ensino não são novas. “Já vinham sendo detectadas. Ou seja, aquilo que já estava comprometido ficou ainda mais. No caso da matemática e da língua portuguesa, conhecimentos estruturais básicos, muito relacionados aos anos iniciais e finais do Ensino Médio: na língua portuguesa, compreensão leitora, e, na matemática, aritmética, relacionado aos números racionais”, revela. 

Foi nessa perspectiva, então, que a Secretaria da Educação do Estado (Seduc) enviou às escolas, antes do início do segundo semestre letivo, um guia de orientações sobre como deveriam ser feitas as priorizações de conteúdo em cada disciplina do currículo escolar.  

“A secretaria disponibilizou uma matriz de conhecimentos básicos, que é um apurado das habilidades e competências que a gente considerou basilares para cada etapa do Ensino Médio. Para que as escolas pudessem, com os professores, olhando para a especificidade de cada uma, da região onde está inserida, fazer sua priorização olhando para o resultado”, afirmou Kelem de Freitas, coordenadora de Avaliação e Desenvolvimento Escolar para Resultados de Aprendizagem da Seduc. 

Em sala de aula 

Na Escola Estadual de Ensino Profissional (EEEP) Irmã Ana Zélia da Fonseca, em Milagres, na região Sul do Estado, uma das principais estratégias adotadas pela gestão escolar para estimular a restauração dos vínculos entre os estudantes e também colaborar para recuperar a aprendizagem é a educação entre pares, que consiste em um estudante ajudar o outro. 

“A gente tem um apoio muito forte dos líderes de sala, que têm realizado um trabalho muito bem articulado de monitoria. Hoje, no horário do almoço, temos oficinas ministradas pelos líderes justamente para trabalhar as dificuldades que eles identificam nas turmas”, compartilha a diretora da escola, Cícera Alves Agostinho de Sá. Além das monitorias abertas, que acontecem nos laboratórios de informática da instituição, ela conta, também estão sendo selecionados monitores de português e matemática, exatamente os maiores déficits

Diagnóstico da defasagem 

O trabalho entre os pares, no entanto, faz parte de outra estratégia maior adotada pela EEEP Irmã Ana Zélia da Fonseca, que é a de cada professor identificar em cada turma grupos que estão mais ou menos avançados em determinados conteúdos dentro de cada disciplina. 

“Para que, a partir daí, o professor possa ter um diagnóstico dos aspectos que o aluno já domina e daqueles que ele precisa investir mais tempo e energia para o aluno dominar. Sempre considerando os conteúdos pré-requisitos, que são essenciais [no currículo escolar]”, explica a diretora, que complementa dizendo que esse modelo foi necessário devido à impossibilidade de tratar cada aluno individualmente.  

É impossível atender à necessidade de cada aluno, mas o professor faz o agrupamento por necessidade e vai direcionando as atividades e intervenções”.
Cícera Alves Agostinho de Sá
Diretora da EEEP Irmã Ana Zélia da Fonseca

Para o professor e cientista-chefe Jorge Lira, a decisão de reorientar o currículo escolar deve ser bem embasada e personalizada. Ele pontua, mais uma vez, a importância das avaliações: “É importante ter esse diagnóstico mais profundo, mais detalhado, mas também muito ágil. Devolutivas de avaliações têm de ser ágeis, o momento não nos permite pensar em devolutivas num prazo muito dilatado, para que os desenhos curriculares e as abordagens metodológicas possam ser pensados rapidamente [pelas escolas]”. 

Como prioridade nos trabalhos de recuperação da aprendizagem, Lira destaca:  

  • Resgatar e ressignificar conhecimentos básicos, sem perder de vista o desenvolvimento de competências complexas; 
  • Garantir o acesso ao repertório dos conceitos e das técnicas, mas também dos seus usos e significados atrelados ao que vai se impor de imediato às nossas realidades escolares. 

Saúde mental 

Além de rever conteúdo, é necessário, na retomada das atividades presenciais, restabelecer o vínculo dos estudantes com a comunidade escolar e com o próprio bem-estar.  

“A maior parte dos nossos alunos vive ainda no regime de acompanhamento dos pais. Eles estavam em casa, privados do convívio social, e chegam à escola trazendo muitas fragilidades”, revela a diretora da EEEP Irmã Ana Zélia. Porém, segundo ela, os estudantes relatam que voltar a conviver com os colegas e com os professores tem os ajudado a enfrentar essa situação. 

Para ajudar nessa transição, a escola tem buscado tratar individualmente de cada estudante que chega à gestão com demanda emocional e, também, de forma coletiva, promovendo oficinas e cursos ministrados por técnicos em enfermagem e/ou residentes de psicologia. 

Acolhimento 

Justamente devido às fragilidades emocionais provocadas pela pandemia é que, no entendimento de Raquel Carlos, gerente executiva de conteúdo do Edify Education, uma empresa de soluções educacionais, as escolas também devem se preocupar em recuperar a saúde mental dos alunos antes de investir efetivamente na recuperação da aprendizagem. 

Para a especialista, passadas as etapas de diagnóstico, o momento é de agir. “A gente precisa despertar os níveis de envolvimento, de engajamento da aprendizagem. Desde os [estudantes] menores até os mais velhos. E uma das questões fundamentais nessa jornada é tratar da saúde mental, do acolhimento. Apesar de os cuidados precisarem ser mantidos, porque os riscos ainda são muitos, a gente precisa baixar um pouco os níveis de ansiedade e acolher alunos e professores pra que eles se sintam novamente bem-vindos às escolas”.  

Aprendizado 

Além de utilizar mais tecnologias como ferramentas de aprendizagem, Raquel acredita que o período de aulas prioritariamente remotas jogou luz sobre a necessidade de democratizar o acesso dos estudantes brasileiros à informação. 

É fundamental que a gente, como País, fomente políticas de acesso às estruturas tecnológicas que os alunos e professores precisam. Isso passa por computadores, por acesso à rede, e isso ajuda nos momentos da aula propriamente dita, nos momentos que a gente chama de síncronos, mas também nos momentos assíncronos, que a gente possa, sem necessariamente estar junto, desenvolver atividades de ampliação da aprendizagem”.
Raquel Carlos
Gerente executiva de conteúdo do Edify Education

Jorge Lira também acredita que o momento é oportuno para que sejam reorientados os modelos de ensino.

Não apenas no sentido de dizer que temos que tornar tudo mais atrativo, mais lúdico, mas revelar que há projetos de vida sérios, transformadores, que vêm junto com o acesso a esse repertório de conhecimento. Não vamos apenas tentar recuperar ‘o que ficou perdido’, mas dar novos significados a essas bases, vinculando a perspectivas em termos acadêmicos, profissionais, de intervenção cidadã”.
Jorge Lira
Jorge Lira, cientista-chefe em Educação Básica e atual diretor do Centro de Excelência em Políticas Educacionais da UFC