A pandemia de Covid-19 desequilibrou o Brasil e o Ceará em todas as áreas, principalmente a Educação. Se, por um lado, o Estado que tinha indicadores educacionais de referência para os demais é um dos mais afetados; por outro, pode ser um dos mais estruturados para recuperar as perdas de aprendizagem. A análise é de Ivan Gontijo, especialista em Políticas Educacionais e coordenador de projetos do Todos Pela Educação - uma organização da sociedade civil que monitora as políticas públicas de educação no País. Ele avalia ainda as perspectivas de retorno às aulas presenciais, os prejuízos e heranças deixados pelo ensino remoto e as possíveis estratégias para retomada do crescimento educacional.
Que riscos a Educação brasileira corre, hoje, com os efeitos da pandemia?
Nos últimos 30 anos, conseguimos vencer o desafio do acesso, colocando, mesmo com atraso, todo mundo na escola. Nosso desafio é promover educação de qualidade a todos. Existem algumas experiências exitosas, como o Ceará, por exemplo. Mas, antes da pandemia, os indicadores de aprendizagem já eram muito baixos e já havia muita distorção idade-série. Com o fechamento das escolas e migração para o ensino remoto, as quedas serão ainda maiores. Não temos como sair da pandemia sem impactos fortes, duradouros e desiguais. E os alunos mais vulneráveis serão os mais impactados.
O Ceará vinha crescendo na Educação Básica, sendo referência nacional. Como a pandemia afeta isso?
Existe uma visão preconceituosa no sistema educacional de que se os alunos são pobres não conseguem aprender, mas o Ceará é um exemplo nacional porque vai contra isso: está entre os mais pobres do Brasil, e consegue entregar uma educação de qualidade.
Esse período dificulta mais pro Ceará, porque, por ser pobre e desigual, os modelos de ensino remoto estão sendo menos eficientes e utilizados. Os indicadores de acesso a aplicativos são mais afetados. Por outro lado, o Estado tem uma vantagem na retomada às aulas, porque estado e municípios trabalham muito próximos, integrados na educação. Existe uma visão de que o aluno não é de Fortaleza, de Sobral, do município – mas cearense. Os municípios são os entes mais frágeis e onde está a maioria dos alunos, e esse trabalho integrado é muito importante na retomada das aulas, porque permite ações mais robustas, com comunicação mais alinhada.
Os professores do Ceará costumam ter relação mais próxima com as secretarias, há um senso de coletividade e pertença maior que em outras redes. Então, o Estado pode estar sendo mais prejudicado, mas talvez consiga compensar isso na retomada, por ser uma rede mais estruturada.
Qual nível de ensino deve ser mais impactado?
A educação infantil está parada, o cenário é de terra arrasada. Ficou sem nada, durante a pandemia. Os alunos não são alfabetizados, então o ensino remoto é inviável para eles. No ensino fundamental, as redes estão fazendo iniciativas muito diferentes, mas é preciso um olhar especial para as crianças que estão em processo de alfabetização, entre o 1º e o 3º anos. Uma criança se alfabetiza num período relativamente curto de tempo: em três meses, aprende a ler. E as perdas desse processo são mais difíceis de serem recuperadas.
Outro ponto sensível são os alunos do 3º ano do ensino médio. Como estão no final do sistema escolar, não temos tempo de recuperar as perdas deles. Os alunos mais vulneráveis, então, estão sendo duplamente prejudicados: não conseguem cumprir o ensino médio, por conta do modelo remoto, e além disso vão ser prejudicados nos vestibulares e no Enem. Maranhão e São Paulo estão pensando no 4º ano do ensino médio, para que os alunos cumpram o ano e tenham uma segunda chance.
(Questionada pela reportagem, a Secretaria da Educação do Ceará afirmou apenas que “analisa todas as possibilidades viáveis e que evitem prejuízos ao processo de aprendizagem dos estudantes”.)
Na reabertura, como as escolas devem se adaptar à nova realidade, preservando professores e alunos?
Essa questão é ultramega complexa: primeiro, quando reabrir as escolas? Os pais já estão voltando ao trabalho, e como fazer isso com os filhos em casa? Escola é lugar de aprendizado, mas também de acolhimento. Mas escolas também são lugares de aglomeração, e podem ser novos focos de transmissão do vírus, o que torna a equação ainda mais complicada. Apesar disso, a decisão de quando voltar não cabe à Secretaria da Educação, mas da Saúde.
O segundo ponto é que se retomarmos as atividades antes de acabar a pandemia, pode ser uma abertura intermitente, e com monitoramento constante – não é porque abriu que ficará aberto pra sempre. Depois, é preciso proteger profissionais e alunos, com protocolos sanitários muito claros. Os próprios professores falam: “como vou garantir que meus alunos de 5, 6 anos de idade usem máscara o tempo inteiro, não se abracem?” Vai ser super desafiador. Precisamos muito do engajamento dos professores e de apoio das secretarias, porque as escolas não vão decidir sozinhas se a carga horária vai ser menor, como vai funcionar a hora da merenda e se vai haver rodízio de turmas.
Nesse cenário, a questão da saúde mental de professores e estudantes entra em xeque. Como isso deve ser trabalhado?
Devemos ter um olhar transversal: a saúde mental de muitas pessoas foi afetada pela pandemia, mas professores e alunos têm algumas particularidades. A natureza do trabalho de muitas pessoas não mudou muito, conseguem executá-lo de uma forma minimamente parecida. A do professor mudou demais, porque é relacional: é dialogar, interagir com os alunos. Tem uma questão de afeto e proximidade muito forte, de sentir como o aluno está em cada dia. Sala de aula e tela do computador são muito diferentes. Além disso, os professores foram muito pressionados, porque a educação não pode parar. Eles tiveram um esforço muito bonito, mas de um jeito não necessariamente estruturado. Porque a maioria das escolas, no Brasil, ainda são de quadro e giz.
Nossos professores não foram formados para ensinar com tecnologia. Alguns se adaptaram melhor, outros pior. Muitos têm sentimento de fracasso. Mas não devem, porque estão tentando. Na volta às aulas, temos que ter um processo muito forte de acolhimento emocional e apoio psicológico pra professores e alunos, porque se eles não estiverem se sentindo bem tratados e cuidados, vai ser muito difícil promover aprendizagem. As duas principais preocupações que temos que ter a curto prazo são os protocolos de saúde e o acolhimento emocional, mais até do que a aprendizagem.
Quanto ao Enem, a situação segue indefinida. Quais os efeitos disso aos estudantes?
A questão do Enem foi confusa, porque foi usada politicamente. O ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, bateu o pé e queria manter a data. A natureza central disso era pressionar as redes de ensino a voltarem logo. Mas é completamente inviável fazer isso. Os impactos pros estudantes são muito grandes: imagine que está estudando, sem acesso ao ensino remoto e o ministro diz que você vai ter que fazer a prova mais importante da sua trajetória escolar em novembro. Imagine o impacto disso pra um menino ou menina de 16, 17 anos. Isso é desconhecer a realidade da maioria dos alunos brasileiros. Para o aluno, principalmente o mais vulnerável, essa situação é muito difícil.
Mas é importante que essa pactuação aconteça o mais rápido possível, porque os alunos precisam saber quando farão a prova, para se organizarem, programarem. Se a prova é em novembro, vou estudar de uma forma. Se for em maio, de outra.
No Ceará, só 69% dos lares têm acesso à internet, e principalmente estudantes de escolas públicas têm dificuldades com aulas online. A pandemia deve alargar as diferenças entre eles e alunos de escolas privadas?
É difícil mensurar o quanto de fato os alunos têm acesso. Podemos contabilizar um lar como tendo acesso à internet, mas com base em um celular que o pai usa pra fazer Uber, não fica em casa o dia todo. Ou um computador com acesso para três, quatro filhos. É difícil qualificar. Antes da pandemia, 25% dos alunos mais ricos tinham praticamente o dobro de aprendizagem dos 25% mais pobres. A pandemia vai fazer com que essa desigualdade aumente. Os governos precisam ter um olhar especial para os alunos mais vulneráveis, fazer mais por eles, que são punidos pela desigualdade. Se tivermos que fazer rodízios nas escolas, os mais pobres precisam ir mais vezes. O 4º ano do ensino médio, se não der para todo mundo, os mais prejudicados devem ter prioridade de acesso. Os recursos são escassos, temos restrições fiscais, então precisamos aplicá-los nos locais mais prejudicados, num olhar pró-equidade.
Apesar dos contras, as aulas remotas devem ser consolidadas como opção de ensino? O que pode e deve ficar como “herança”?
A curto prazo, até a pandemia acabar, e não sabemos quando vai ser, o ensino remoto tem de ser fortalecido, aprimorado e continuado, porque não vai dar pra todo mundo frequentar a escola no mesmo dia. A longo prazo, pode ser uma chance de a tecnologia entrar de vez nas escolas. Os professores não usavam, os alunos usavam, mas não de forma pedagógica. Existe muita coisa legal de tecnologia em educação, mas é preciso ter mais formação aos professores: 70% deles afirmam nunca ter tido. A tecnologia não pode ser enxergada como fim, que vai resolver todos os problemas que aprendizagem – ela é um meio. A mediação pedagógica dos professores é fundamental. Já vimos que o modelo 100% remoto não agrada ninguém.
O que fazer, então, para tornar essas ferramentas mais democráticas?
É preciso cuidado, porque nesse momento surgem os vendedores, com a típica proposta de que dar um tablet pra todos os alunos resolve o problema. E não funciona. É importante promover o acesso à tecnologia. Tem uma proposta interessante de usar o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST) pra apoiar a aquisição de internet nos lares mais vulneráveis. Pra dar mais acesso, é preciso dinheiro.
O segundo ponto é que só o acesso não basta: se fosse assim, alunos com internet teriam indicadores de aprendizagem altíssimos, e não é assim. É preciso formação para o uso pedagógico dos recursos tecnológicos. No Brasil, mal conseguimos formar os professores para desempenharem seus papéis em sala de aula. E eles precisam ser o elo entre os alunos e a tecnologia, pra que seja uma interação proveitosa em termos educativos.
2020 é um ano-zero, quebra os referenciais anteriores que avaliavam a educação?
Vai ser difícil analisar séries históricas sem olhar para a pandemia. O principal indicador que temos no Brasil é o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), que analisa rendimento e desempenho a partir da Prova Brasil. Ela é aplicada a cada dois anos, a última foi em 2019. É muito provável que os indicadores, que já são muito ruins, tenham uma grande queda. E é preciso um olhar paciente, entender que as razões disso estão muito ligadas ao fechamento das escolas. Essa queda não pode significar que a educação não é importante, que não está funcionando. É o contrário. Mesmo num momento difícil, é preciso reforçar que sem educação não vamos a lugar nenhum.
De quanto tempo precisaremos para recuperar os danos da pandemia à Educação?
Lançamos duas notas técnicas, uma delas sobre volta às aulas. Olhamos pra outras experiências de lugares que ficaram com escolas fechadas por muito tempo, por causa de outras pandemias, de desastres naturais. Esses estudos mostram que os impactos são de cerca de três anos. É mais ou menos com isso que temos trabalhado, serão impactos duradouros. E, infelizmente, diferentes para as faixas: quem está no ensino médio, não vai ter tempo. Os mais novos, conseguimos recuperar.