Capitão do Tirol celebra evolução do clube e destaca valor do futebol: 'Favela não vai sair de mim'

Equipe volta a campo na disputa da Taça Fares Lopes

"Eu moro aqui na favela. Talvez eu saia. Eu quero sair, é claro. Mas a favela não vai sair de mim, porque é um lugar que eu amo.” A frase é do zagueiro Domingos Sávio, cria do Tirol. Da comunidade no Grande Pirambu, em Fortaleza, o time de futebol é batizado com o mesmo nome. A história do jogador de 36 anos tem Thiago Silva como referência e retrata a realidade de muitos jovens brasileiros: o envolvimento com venda de drogas. Mas o esporte transformou a vida dele com novos sonhos. 

Capitão do time, contribuiu para o título de Campeão Cearense da Série B em 2024. No dia 24 de abril, o grupo comandado pelo técnico Nilson Corrêa venceu o Cariri por 3 a 0, no Estádio Presidente Vargas. Com a conquista, a equipe garantiu vaga na elite do futebol estadual pela primeira vez, em 2025.  Há 13 anos no Tirol, o jogador comemora a conquista. 

“É o clube da minha comunidade. É com imensa satisfação que eu digo que aqui é a minha casa, é a minha comunidade. Já joguei em outros clubes da primeira divisão, mas jogar pelo Tirol vai ser maravilhoso. Quando fomos para a semifinal, que foi o jogo do acesso, eu vi meus amigos, meus pais, minha família e pessoas que realmente têm carinho por mim, que torcem pelo meu sucesso e é gratificante ver isso”, ressaltou.

“A FAVELA NÃO VAI SAIR DE MIM”

A relação com o futebol veio por influência do pai, com quem chegou a dividir o campo ainda adolescente. Ele se define como um atleta que gosta de ficar com a bola no pé, de bons passes. É contra dar carrinho e prefere servir para o gol. É bastante sério e tem aversão a perder. Lembra alguém? Domingos tem Thiago Silva, ex-capitão e zagueiro da Seleção, do Chelsea e recém-contratado pelo Fluminense, como referência na posição.

O atleta chegou ao sexto acesso da carreira no futebol cearense. Foi campeão da terceira divisão com o América (2013), subiu para a 2º divisão também com Floresta (2016), Tirol e Maranguape (2023). Defendendo o Uniclinic em 2015 foi para a elite, momento que se repetiu com a Coruja em 2024. Mas as glórias que o futebol deu a ele não vieram somente dos resultados em campo.

O esporte me tirou de caminhos tortuosos. Nunca usei droga, mas vendi. Graças a Deus o esporte também me tirou disso, me deu novos ares.
Domingos Sávio
Atleta do Tirol

Crescer e amadurecer rodeado pelo esporte transformou a vida de Sávio que enxerga na chegada do Tirol ao bairro a mesma oportunidade para crianças e jovens. Primeira SAF registrada no Ceará, o Tirol, antes chamado de Grêmio Recreativo, foi criado em 2008. Atualmente, o clube trabalha com 250 garotos nas categorias de base (Sub-13, 15, 17 e 20) e o profissional. 

“É uma porta que abre e muitas vezes tira pessoas como eles da rua, a maioria tem a família desestruturada. Então, podiam estar envolvidos em drogas e em outras coisas. E essa porta aberta tira muita gente desse meio. Já vendi drogas e, graças a Deus saí, porque tinha uma família estruturada, pessoas que me ajudavam. Isso foi primordial para que eu saísse”, reforça o jogador.

"Eu, como alguém da periferia, como alguém que passou por momentos difíceis, como homem e servo de Deus, procuro ser um exemplo dentro e fora de campo. Nós erramos muito como seres humanos, mas procuro dar um referencial para que essas crianças me vejam como alguém que busca fazer as coisas corretas", completou. 

Os amigos de infância do jogador continuam por perto. Assim como o defensor, cresceram no bairro e agora acompanham a carreira do jogador e comemoram junto cada conquista. Corriam atrás da bola na escolinha, mas seguiram caminhos diferentes de profissão. 

“A gente se conheceu, e desde então criamos essa amizade, que construímos ao longo dos anos. Acompanho toda a carreira dele, como Belém, os jogadores da nossa comunidade. A gente sabe como nossa comunidade é vista, mas dentro disso conseguiram garimpar um projeto bonito. Alavancou nosso bairro”, relembrou Ícaro Gustavo, desenvolvedor de software.

"Vi ele sendo campeão. É um cara muito esforçado. A equipe toda está saboreando esse título, que vai somar aí na carreira dele. Falei que foi uma benção que Deus deu a ele”, destacou o barbeiro Diogo Inácio. 

“RODAVA FORTALEZA EM CIMA DE UMA MOTO”

De férias, o atleta vai aproveitar a família e seguir dedicado às atividades físicas para manter a forma. O Tirol volta a campo somente em outubro, para a disputa da Taça Fares Lopes. Mas além de zagueiro, Domingos também joga em outro campo: está no último período do curso de Fisioterapia. Acordava às 5 horas da manhã e preparava o café para encarar a rotina entre treinos, igreja, aulas e o estágio no Hospital do Coração, em Messejana. 

“Tenho professores que me ajudam nos momentos difíceis. Quando não consigo ir para a aula, eu preciso repor, é claro. Só Deus para me ajudar a fazer os dois. Eu preciso, apesar de tudo, estudar. Estou fazendo TCC, tem estágio. É bem puxado, é cansativo, mas eu consegui”, reforçou.

Domingos relembra quando lesionou o joelho e ficou três anos sem jogar. O zagueiro, já acostumado a responsabilidades, trabalhou por um ano trabalhando no CT no setor de expedição. Depois, subiu na moto para vender planos odontológicos pela capital cearense até voltar a jogar em 2020. 

“Rodava Fortaleza todinha em cima de uma moto, e eu não esperava mais viver esse sonho (jogar). Era algo gratificante jogar futebol. Quando passei a não viver mais ele, valorizei mais. Eu trabalhava, dava o meu melhor como em tudo o que eu faço, mas não era o que eu amava. Após isso, pude voltar. Lembro das minhas orações. Eu clamava a Deus e dizia: "Senhor, quero viver isso mais uma vez", revelou.

E viveu. Colecionou conquistas e agora pensa em 2025, quando vai estar em campo com o time da comunidade que vai disputar a elite do futebol cearense no estadual pela primeira vez. 

“Lembro que nós jogávamos competições de bairro. Muitas pessoas passaram por aqui, deixaram sua contribuição. Mas ver o crescimento desse clube, ver uma estrutura como essa, pra mim é gratificante. Não tinha isso. Fico feliz por fazer parte dessa história e ficar marcado.” 

“Espero que tenha um bom investimento para trazer mais jogadores. Já tem muitos bons, de alto nível, mas para reforçar nosso plantel. Tenho certeza que esse time ainda vai ser conhecido dentro do futebol. Esse esporte transformou a minha vida, me levou por caminhos que eu jamais esperaria viver.