Autista e surdo, jogador de 21 anos vira atleta profissional e estreia na elite do Cearense

Caio Pedro é lateral-esquerdo do Horizonte

Quando o futebol entrou na vida de Caio Pedro da Silva, um novo mundo começou a se formar. O jogador encontrou no esporte um espaço de inclusão, além da chance de melhorar as condições financeiras. Autista e com surdez nos dois ouvidos, o jovem de 21 anos, formado na base do Horizonte, virou peça fundamental no retorno do time à primeira divisão cearense em 2024. 

Campeão da Série B do estadual ano passado com o Galo do Tabuleiro, o lateral-esquerdo tem Marcelo, do Fluminense, e Filipe Luís, ex-Flamengo, time do coração, como referências na posição. Nesta temporada, ele se profissionalizou. O Diário do Nordeste acompanhou um dia de treinamento dele no Estádio Domingão, em Horizonte, cidade da Região Metropolitana. 

“O autismo foi diagnosticado quando ele tinha quatro anos. Eu não queria aceitar. Por não entender as coisas direito por causa da audição, chamavam ele de doido. Muitas vezes ele não ficava na creche porque as crianças faziam bullying. Aí minha mãe disse: ‘procure mais conhecimento, vá a um especialista’. E fui. Acabou detectado também a perda auditiva de grau leve no lado direito e moderado no esquerdo, a dificuldade de falar e o déficit de aprendizado. Aí procurei e tinha na escola onde ele estudava, na Escola Municipal de Ensino Fundamental Olimpio Nogueira Lopes”, revelou a mãe, Tatiana Barros, de 38 anos, que trabalha como serviços gerais na prefeitura do município.

18
milhões de pessoas com deficiência (PCDs) no Brasil, de acordo com pesquisa divulgada em 2022 pelo IBGE. Dessas, 1,2% apresenta dificuldade para ouvir, mesmo com uso do aparelho auditivo. Já os autistas são aproximadamente 2 milhões no país, segundo estudo da OMS, publicado em 2010.

No último censo, o IBGE incluiu perguntas sobre o TEA pela primeira vez na história, com intuito de ter dados mais sólidos a respeito dessa população. No Ceará, a Secretaria de Saúde (Sesa), através da plataforma IntegraSUS, registra 10.780 pessoas no espectro autista, em 2024. Entre as características dessa neurodiversidade, estão as dificuldades de interação social e de comunicação.

Em 2023, o meia da seleção da Irlanda, James McClean, revelou estar no espectro. Caio tem limitações na fala, não usa aparelho auditivo e interage bem. Além de acolhimento, Tatiana encontrou no ambiente escolar a chance de integração e desenvolvimento do filho através do esporte. O primeiro contato com a bola veio com o futsal, nos projetos da escola.

“Quando entrou o futebol, aí ele melhorou. Até hoje é danado”, diz a mãe em tom de brincadeira.

Ela me ajuda muito. Sempre está no meu pé. Nunca deixa eu desistir”, ressalta o esportista. 

O futebol com seus altos e baixos

O menino tímido cresceu e começou a atuar no Ajax da Vila, time da comunidade de Alto Alegre, bairro de Horizonte. Deixou as quadras para dar os primeiros passos rumo a profissionalização como jogador no campo. Chegou às categorias de base do Galo do Tabuleiro. Mas, sem espaço, quase deixou a carreira.

“Fui para o Sub-17 do Horizonte e não gostei muito. Saí, depois fui para o Sub-20, joguei a Copa Seromo (torneio de base). Em 2022, eu não queria jogar. Estava desanimado. Eu queria jogar sempre, mas queria desistir também. Em 2023, o Adriano foi à minha casa, o Vitão, o Júnior e o Zé Hamilton conversaram comigo e estou aí de novo. Agora estou feliz demais”, revelou Caio. 

“Insisti, chorei. Mas, graças a Deus, né…”, diz a mãe enquanto olha o filho. “É gratificante fazer parte de um sonho dele”, completa Tatiana.

José Hamilton, tio e funcionário do Horizonte, que o levou para o futebol, ainda na adolescência. Antes de ser lateral, o atleta atuou como atacante, zagueiro e goleiro. A família grande é a torcida favorita dele. Na final da segunda divisão do estadual de 2023, quando o Galo derrotou o Icasa e conquistou o bicampeonato do torneio na Arena Romeirão, todo mundo se reuniu para torcer e comemorar.

O defensor conquistou espaço e saiu do banco para assumir a titularidade na campanha do título do Cearense. Foram 14 jogos, 12 no time principal. Ele marcou dois gols decisivos contra o Crato, na fase classificatória, e diante do Guarany de Sobral, no quadrangular final do torneio.

Foi uma coisa difícil, né? Eu vinha trabalhando bastante. Eu sempre gostava de jogar de titular. Ninguém gosta de ficar na reserva. Acabou que deu certo. Vi uma portinha aberta. Fiquei esses jogos todinhos, fiz gol, ganhei título. Joguei a final… Minhas pernas pesaram, que não dava nem vontade de jogar mais. (Pensei) Como é que eu vou correr agora? Aí fiquei na minha mente. Joguei até o final e deu certo.
Caio Pedro
Jogador do Horizonte

 

Caio não esquece da família em nenhum momento. É quando a timidez durante a entrevista fica um pouco de lado. Ele mora coma a mãe, o padastro Joabe Silva e as irmãs Tainá e Analicia, de 15 e 10 anos, respectivamente. Mas levanta o olhar e abre mais um sorriso ao falar sobre o carinho pelos avós Liduina Barros e José Gadelha. Além dos tios, o avô é outro a transmitir sabedoria de vida e de campo. 

“Meu avô, que gosta de esporte, me ensina como faz gol, como joga. Ele assiste televisão e dá uns conselhos bons. Ele já jogou bola pelo interior. Ele fica falando, e eu: ‘tá certo’. Aí fala dele, que jogou bola na vida, como é que jogava de volante, lateral, fazia tudo lá”, relembra o camisa 16.

Filipe Luís e Marcelo: referências

O camisa 16 se define como um jogador velocista, que faz lançamento, cabeceia, sobe para o gol, marca e usa a bola parada. Perguntado sobre as referências na posição, ele brinca. 

“Tem muita gente. Quer só um mesmo, é? Marcelo (Cinco vezes campeão da Champions League e quatro do Mundial com o Real Madrid, hoje defende o Fluminense, com quem já ergueu a taça Libertadores.). Filipe Luís também (ex-atleta, bicampeão da Libertadores e do Brasileirão com o Flamengo). Esses dois conheço mais”, destaca.

Caio assinou o primeiro contrato como profissional este ano. Na elite do estadual, estreou na derrota do Horizonte para o Maracanã por 3 a 1, na 2ª rodada do torneio. Sob comando do técnico Filinto Holanda, ganhou espaço e segue em busca de evolução. 

“É um atleta com muita força e velocidade, Ele pega rápido o que se pede. Ele entende só em a gente gesticular. E nos ajudou ano passado, fez gols decisivos. É um menino que melhorou em todos os aspectos. Tenho convicção que o Caio vai ajudar muito a família e os clubes que ele estiver atuando. O esporte resgatou esse garoto.”, destacou o treinador.

“Ano passado a gente teve a primeira oportunidade de trabalhar juntos. Mas desde pequeno a gente sempre morou no mesmo bairro. É um cara super dedicado, trabalhador”, disse o atacante Leozinho, companheiro de equipe.


Encontro, fé e sonhos

Numa sociedade ainda tão excludente, encontrar um semelhante traz certo conforto. Durante uma partida da Série B Cearense, ano passado, o defensor conheceu uma criança surda no estádio.

“Foi o segundo jogo que eu fiz. Marquei gol, nós ganhamos de 3 a 1. Tinha um molequinho da torcida do Guarany com problema no ouvido também. E no final da partida falei com ele. Percebi que ele gostou de mim. Saí de lá feliz”, relembrou Caio. 

Quando o filho entra em campo, Tatiana cumpre um ritual: de terço na mão, ela pede que Deus ilumine Caio e o time. Aos poucos, a mãe vê o menino introspectivo dominar o gramado, tomar iniciativa e se lançar à disputa.

“Se seu filho pega uma bola e diz que quer ser jogador, corra atrás. Corra! É difícil. A gente chora, sofre, passa por bons bocados, mas no futuro a gente vê a recompensa”, enfatiza Tatiana. 

“Meu sonho não é ter muita coisa, não. É ajudar a minha família, ter a cabeça erguida, levantada e jogar bola. Não tenho muito sonho, não. É ver minha família feliz e seguir em frente. Eu tenho sonho também de jogar no Flamengo, que é meu time de coração. Ceará... Todos os times”, ressaltou Caio.

“Meu futebolzinho é a coisa mais feliz da vida. Fica longe um pouquinho da família, dos amigos, mas sempre feliz”, finaliza com sorriso de quem vai continuar. Jogar bola não é só esperança de um futuro melhor, mas a realidade de um presente que abre novas perspectivas.