Yara Pinheiro Cavalcante, a Yara Canta, canta sobre amor, afeto e felicidade. Canta também militando pelas mulheres trans e travestis, mas isso ela o faz mesmo sem soltar a voz. Porque a simples presença dela no palco já expressa o que sente e pelo que luta. No mês do orgulho LGBTQ+, a Sisi entrevista uma das vozes militantes do Ceará desta causa social.
Aos 27 anos, Yara Canta é multiartista, Coordenadora Geral da Associação de Travestis e Mulheres Transexuais do Ceará (ATRAC) e é integrante do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negros e Negras (Fonatrans). Iniciou a carreira artística aos 18, acumulando até hoje experiências na música, teatro, moda e produções culturais.
Como cantora, criou o projeto autoral Duo Fervô, com o qual lançou dois singles que acumulam mais de 60mil plays nas plataformas digitais. Nas artes cênicas, participou de peças e musicais, atuando como atriz e também com produção de figurino. Ela também fez parte do coletivo Terra Prometida, composto totalmente por pessoas trans e que, entre o final de 2020 e início de 2021, teve uma obra exposta e premiada no 71º Salão de Abril.
Nesta entrevista à série Dona de Si, Yara Canta fala da carreira, mas também das conquistas que trazem orgulho pessoal e coletivo para a mulher que representa.
Em que momento da vida você percebeu que o caminho da arte te chamava?
O meu caminho na arte sempre surgiu de uma maneira fluida, desde a adolescência. Foi de uma forma leve que eu iniciei, gravando covers muito despretensiosamente entre amigos. Quando eu fiz 18 anos, comecei a produzir festas, a frequentar mais boates e a tocar como DJ. Logo depois acrescentei o canto. Então, a partir daí que eu vi que realmente seria o caminho de fato de levar o canto mais a sério e focar nesse lado artístico.
Você destacaria um marco na sua carreira que contribuiu para a artista que você é hoje?
Já fiz muitas coisas: teatro, musical e já tive um duo de música pop, O Fervor, que tem dois singles, com clipe e tudo (no Spotify a gente tem mais de 60 mil plays). Foi bem bacana essa época, mas o marco mesmo, que contribuiu muito para a artista que eu sou hoje, foi o Curso de Princípios Básicos de Teatro (CPBT), que acontece no Theatro José de Alencar. Realmente, ele foi um marco que eu considero até um divisor de águas na minha vida. Me formei em 2019. Foi quando eu percebi que de fato não sabia nada e onde eu descobri muita coisa. Posso dizer que sou artista, depois desse curso. Apesar de já ter feito várias coisas, mas o CPBT foi o que abriu a minha visão e eu me senti mais segura de mim mesma.
Que experiências pessoais ou profissionais valeram muito a pena viver?
Eu citaria a experiência de expor uma obra no Salão de Abril, edição 71. Eu expus uma obra juntamente com várias outras colegas trans do Coletivo Terra Prometida. Nós expomos e também fomos premiadas por essa nossa exposição. A experiência de agora estar na ATRAC (Associação de Travestis e Mulheres Transexuais do Ceará), enquanto coordenadora geral, tem valido muito a pena. Não é tão simples, não é tão fácil, mas eu acho muito importante estar nesse local, tentar fazer alguma coisa para mudar a realidade que as pessoas trans, especificamente que as mulheres trans e travestis enfrentam na sociedade em que a gente vive.
E também quero citar outra coisa, que foi o encontro do Fonatrans (Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros), que aconteceu em 2020, do qual também faço parte. E foi uma honra participar desse encontro. Fui coroada Miss Garota Fonatrans. A gente chamou de aquilombamento travesti, porque eram muitas mulheres trans, travestis reunidas, conversando sobre pautas políticas e extremamente necessárias que a gente aborda na militância, mas também confraternizando, conversando sobre vivências, rindo, e foi um momento muito especial também.
O que você ainda não fez, mas deseja muito realizar no campo artístico?
Lançar um material autoral, um CD completo de músicas autorais, onde eu possa colocar forte mesmo a minha identidade, a minha presença, o que eu preciso falar, o que eu canto, o que eu acredito. Mas eu quero construir do zero, um projeto meu, onde realmente eu esteja por inteira completamente.
Como uma das vozes da militância LGBTQ+, de que conquistas você mais sente orgulho, tanto na vida pessoal, sendo mulher negra e trans, como coletiva?
E o orgulho no sentido coletivo, eu diria que eu tenho orgulho de ver várias amigas ocupando espaços cada vez mais, em empregos, ocupando também cargos em conselhos nacionais. E tudo isso me deixa muito orgulhosa e muito feliz de ver essas outras pessoas trans, travestis deixando de ocupar um lugar subalterno. Nós não estamos mais aceitando ocupar a marginalidade que tanto nos jogaram. Nós não aceitamos mais e estamos conseguindo ocupar outros espaços, mas ainda nos mantendo vigilantes ainda cobrando para que todas possam estar em um local de humanização. Porque ainda não são de uma forma tão plena. Eu preciso comemorar todas as que conseguem ocupar seu lugar na arte, na área de educação, de saúde, mas não são todas. E eu só vou estar feliz e realmente orgulhosa e contente quando todas as pessoas trans, travestis deixem de ocupar um local de subalternidade.Uma das coisas que mais me orgulha na vida pessoal é de ter os meus pais ao meu lado. Eles me apoiam, valorizam o meu trabalho. Estão sempre juntos. Eles me apoiam de uma forma que, infelizmente, é muito difícil pra maioria de nós, pessoas trans, ou LGBTs no geral. Que muitas são expulsas de casa já tão jovens e se veem sem família. E eu tenho a minha família me apoiando muito é uma das coisas que eu realmente mais sinto orgulho na minha vida pessoal.
Como as causas sociais que você abraça atravessam o seu trabalho artístico?
As causas sociais que eu abraço atravessam o meu trabalho porque ainda que eu suba no palco e não diga nada em relação a militância, de fazer uma fala política, ainda assim, a minha presença por ser quem eu sou já diz muita coisa. Já fala tudo e isso já é esse atravessamento.
Então, eu levo também essa indignação para o palco, levo questionamento em relação ao afeto, que eu adoro cantar sobre amor, sobre felicidade. E só de eu falar sobre amor ou felicidade isso já é muito político, porque nós, travestis e transexuais, somos extremamente negadas ao afeto. E se eu canto sobre o afeto, isso já é muito potente.
Há lutas que são invisíveis aos outros. Como se fortalece para tornar o caminhar mais leve?
Acredito que me apoiando em uma rede de afeto entre amigas que também são trans, uma rede de afeto trans. Eu me apoio nessas amizades, nessas irmãs de luta, irmãs de vida que eu sei que passam por várias coisas que eu também passo. A gente tem uma vivência em comum e, embora cada um tenha a sua individualidade, a gente se encontra em algum ponto e isso nos fortalece. Só de estarmos juntas, mesmo que agora com pandemia não tão presencialmente, mas, virtualmente, a gente se encontra, conversa, troca vivências e isso nos fortalece. E também a minha família, como eu comentei, minha família é um ponto de que me fortalece muito.
Quem são as mulheres que mais te influenciam?
É muito difícil responder essa pergunta, porque são muitas mesmo. Não tem como fazer uma lista com todos os nomes. Eu vou dizer minha mãe, que é uma inspiração muito grande pra mim, é meu tudo. A Alcione que até no campo da música me inspira, me influencia demais. E eu vou colocar todas as travestis, mulheres transexuais que estão numa luta, que começaram uma organização política há décadas. A Giovana Baby que é um que é uma matriarca do movimento de travestis e transexuais no Brasil. Keila Simpson, Bruna Benevides são pessoas que eu admiro demais, tenho no meu coração e eu não tenho como citar todas, mas eu só posso dizer que eu tenho grande consideração e amor pela força que todas elas emanam.
Para você, o que é ser dona de si?
A partir do momento que eu entendi que não precisava da aprovação de ninguém para ser quem eu sou, me vi dona de mim, dona do meu corpo, das minhas escolhas e pude começar a viver quem eu sou. De viver quem eu sou sem ligar para opinião de ninguém, porque realmente pra gente viver a vida ouvindo opiniões das pessoas, dando pitaco em cada coisa que você faz, especialmente falando sobre questão de gênero, de transexualidade, porque preconceito é muito grande, disfarçado de opinião, disfarçado disso, daquilo ou de aceitação. E eu não busco aceitação. Eu sou.
Que aprendizado você faz questão de compartilhar com outras mulheres?
Eu acho que vou repetir um pouquinho a questão de ser dona de si. Existe uma opressão muito grande ainda sobre as mulheres, então eu acho que o principal é:
seja independente, não ligue pra opinião dos outros. Viva a sua vida buscando fazer o que te faz bem, sem ferir outras pessoas, logicamente. Buscando fazer o que te faz bem, trabalhar no que te agrada, se for possível, buscar trabalhar numa área que você se sinta bem, se sinta feliz, sabe? Busque alcançar sua plenitude. E também tenha uma rede de apoio, para ouvir outras mulheres, dar apoio, uma palavra e estar ali presente.