Violência obstétrica de palavras a intervenções físicas: 'Minha vida sexual foi destruída; meu sonho de parto foi tomado de mim'

Mulheres relatam experiências traumáticas e profissionais da saúde apontam alternativas

“Eu sofri violência no dia que meu maior amor nasceu”, desabafa a estudante cearense Caroline Souza, 27 anos, sobre a experiência de parto do pequeno Thomaz. Para ela, colocar em palavras as sequelas físicas e emocionais daquele que almejava ser o momento mais feliz da vida ainda dói, mas, ao mesmo tempo, ajuda. E, nesse processo, identificar-se com o relato de outras mulheres, como o da influenciadora Shantal Verdelho, é encorajador.

“Foi a partir do caso dela que decidi me abrir e comecei a ver ainda mais o que aconteceu comigo”, partilha, em referência à denúncia de violência obstétrica contra o médico Renato Kalil que repercutiu nacionalmente esta semana, e cuja investigação policial já está em andamento na cidade de São Paulo.

Inicialmente, Caroline achava que a experiência pessoal havia sido maravilhosa, pois guardava consigo a máxima de que “o importante é o bebê nascer bem”. Com um parto induzido, ela ficou 26 horas em trabalho até o momento em que o filho nasceu. Porém, assim que foi para o quarto, o marido perguntou sobre o que havia ocorrido, se ela havia percebido e daí seguiu-se a investigação.

“Tudo começou no expulsivo, o médico veio com uma história de ‘deixa eu te dar uma ajudinha’ e, com isso, forçava minha vagina com as mãos para abrir e o bebê passar, mas meu filho já estava saindo, não havia necessidade de acelerar algo que meu corpo já estava no processo. Quando a contração parava, ele tornava a dizer ‘vamos lá, vou te ajudar’, e nisso cada vez ele forçava mais e mais com as mãos, até que meu filho nasceu e tive laceração, levei pontos e até hoje tenho sequelas por conta disso”, relata.

O que é a violência obstétrica e quais os tipos?

De acordo com a médica obstetra Liduina Rocha, a violência obstétrica se caracteriza, no sentido mais amplo, pela perda da condição de sujeito e da centralidade da mulher no seu processo de gravidez, parto e puerpério, e pode se apresentar de várias formas, desde verbal, psicológica até intervenções físicas. 

Sendo assim, a profissional explica que trata-se de uma violência sistêmica, que pode ser exemplificada na dificuldade de acesso ao pré-natal, na ambiência inadequada para uma assistência adequada ao parto e na intimidação de mulheres no processo de parir.

“Desde o uso de expressões como ‘não seja escandalosa’, ‘não doeu na hora de engravidar, né’, até o não respeito a lei do acompanhante, realização sistemática de episiotomia (corte no períneo) sem autorização e sem indicação, empurrar a barriga da parturiente (manobra de kristeller), não permitir que a mulher decida a posição que quer parir”, completa a participante da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras e membro do coletivo Rebento.

A médica explica ainda que o chamado "ponto do marido", ao qual a influenciadora Shantal foi submetida, é um procedimento não descrito academicamente, mas culturalmente presente.

"Não há nenhuma base científica para sua realização, e pontos em excesso ou que 'apertem' muito a vagina podem se relacionar a mais dor, e consequentemente, perda de prazer nas relações sexuais", evidencia.
Liduina Rocha
Médica obstetra

Caroline entende que sofreu intervenções físicas sem necessidade. Segundo ela, a bolsa também foi estourada em um momento que o médico fez parecer essa a única solução possível. “Ele disse: ‘queremos que esse bebê nasça ainda hoje’. Junto com a força que fazia com as mãos, aplicou ocitocina sem meu consentimento, quando vi já estava lá no soro. Ele foi orquestrando toda uma situação da forma que ele quis”, lamenta.

Quatro meses depois, além do desgaste emocional, fisicamente, ela tem sentido muitas dores na cicatriz.

“Minha vida sexual foi destruída e meu sonho de parto foi tomado de mim. Havia feito um plano, entreguei e estava anexado lá e muitas coisas do que quis não foram respeitadas. Destruíram a vida sexual de uma mulher de 27 anos por pressa de fazer um bebê nascer”, ressente-se.
Caroline Souza
Estudante

A professora Isadora Faheina Gomes, 32, igualmente partilha um relato delicado do nascimento da primeira filha, Liv, há dois anos. 

“Durante o trabalho de parto, precisei realizar um exame de toque durante uma contração, procedimento bem dolorido, e ouvi da médica: ‘ah, desse jeito não vai dar certo’. Como já estava em um processo bem arrastado, e eu e meu esposo já um pouco assustados, essa frase me deixou para baixo, comecei a desacreditar do meu corpo”, conta.

“Mesmo com a assistência de outra médica maravilhosa que não permitiu mais que a colega entrasse na sala de parto, eu realmente não consegui. Essa ‘simples’ frase é uma violência obstétrica e pode ter impactado negativamente, acabando com meu tão sonhado parto normal”, identifica.

Direitos da gestante

No centro cirúrgico, durante o procedimento de anestesia, Isadora também teve o acesso do acompanhante negado, mesmo sendo este um direito previsto na Lei Federal n° 11.108/2005. “Ele só entrou no momento da retirada da minha bebê do útero. E quando solicitei sua entrada, tive que ouvir piada: ‘ah, a gente faz x partos por dia aqui, ninguém vai esquecer de chamar seu esposo não’”, lembra.

Mas a pior violência de todas, segundo ela, foi a neonatal. “Tive meu direito negado em ficar na presença da minha bebê, mesmo ela nascendo em perfeito estado de saúde. Passei 4h longe dela, pedindo por ela, querendo amamentar e só me diziam que eu não podia, que a sala era muito fria. Eu achava que ela estaria com o pai, só depois soube que estava sozinha no berçário”, afirma.

Esse primeiro contato, pele a pele, é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

“Mas não tivemos nossa tão sonhada hora de ouro. Isso tudo impactou em um puerpério triste, cheio de problemas, onde precisei da ajuda de meus familiares, principalmente meu esposo e minha mãe, para conseguir juntar meus pedacinhos e seguir. Pedindo desculpas a minha filha, pois num momento tão frágil, não consegui lutar pelos nossos direitos”.
Isadora Faheina Gomes
Professora

Parto humanizado

Em busca de um segundo parto ideal, Isadora contratou os serviços de uma doula, profissional que realiza o atendimento e o acolhimento da gestante e de sua família desde o momento da gestação até o pós-parto, ancorada nas boas práticas preconizadas pela OMS e pelo Ministério da Saúde. 

“A Krys foi um anjo de Deus, desde o parto de 2019, me ajudando mesmo virtualmente, fazendo eu entender que a violência obstétrica jamais teria sido culpa minha. Junto com ela, estudei muito e fizemos um lindo plano de parto, para deixar registrado e escrito tudo que eu gostaria”, explica Isadora.

O pequeno Lui ainda não completou dois meses, mas já trouxe o conforto no coração que a mamãe precisava. “Graças a Deus, tive um parto normal, lindo e respeitoso. Meu bebê não saiu de perto de mim. Não tivemos a hora dourada, pois ele nasceu prematuro, precisou de intervenção, mas, assim que possível, veio para meu colo e não nos desgrudamos mais. O parto do Lui foi uma cura para minha alma e em homenagem a Liv, minha primeira filha”, diz.

Psicóloga e mãe do Iago, Krys tornou-se doula após o nascimento do filho, pois também sofreu com violência obstétrica. Desde 2014 nessa função, ela já acompanhou mais de 800 famílias e, muitas delas, vieram após sofrer problemas dessa natureza. 

“Já acompanhei diversos casos de mulheres que foram impedidas de prosseguir para o parto normal com desculpas incabíveis, que levavam a uma cesária desnecessária, como algumas considerações do obstetra dizendo que elas eram muito jovens ou muito velhas ou muito gordas. São casos muito frequentes e é muito importante a gente frisar que acontece em todos os âmbitos: no SUS, nos convênios e também com equipes particulares”, observa.
Krys Rodrigues
Doula

A doula entende a violência obstétrica como uma violência de gênero, amparada pela cultura machista, e, por isso mesmo, defende que se fale cada vez mais a respeito, para que as pessoas possam detectar isso durante o processo.

“Aqui é importante lembrar que todas as mulheres (e homens transexuais que engravidem) podem estar expostos à violência obstétrica, mas que ela não acontece em igual proporção, e que mulheres negras, vulneráveis econômica, social e culturalmente, com orientação sexual não normatizada, historicamente, têm sido mais expostas”, completa a obstetra Liduina Rocha.

Como denunciar

Caroline, Isadora e Krys encontraram nas ouvidorias dos hospitais o primeiro suporte para denúncia das experiências pelas quais passaram. Segundo a médica Liduina Rocha, os comitês de ética das clínicas e os conselhos das diversas categorias profissionais são espaços adequados e legítimos para o acolhimento desse tipo de situação.

Mas a médica defende ainda que a violência obstétrica pode ser promovida por autores distintos, desde os vários profissionais que assistem a mulheres nesse período até sua rede de afeto, familiares. Assim, além da ouvidoria dos hospitais (número 136, no caso do SUS), as mães podem recorrer a instâncias jurídicas, embasadas no Direito à Saúde da Mulher.

“O fato é que essas denúncias precisam acontecer cada vez mais, para que se inibam de cometer a violência ou tenham a punição. Eu sempre digo que o dia do nascimento dos filhos é um dia que vai ficar marcado para sempre, e a gente vai ficar na vida dessas mulheres, dessas famílias. Que tal deixar a melhor marca possível, uma marca feliz, não é muito melhor?”
Krys Rodrigues
Doula

Neste sentido, a obstetra Liduína Rocha reforça que todos os procedimentos realizados pelos profissionais que assistem uma parturiente no seu processo de parir devem ser dialogados com ela, explicados e consentidos, e devem ser baseados nas melhores evidências que a ciência produz.

"É importante a gente refletir que violência obstétrica não tem relação direta com via de nascimento, e que cesáreas bem indicadas são uma conquista da humanidade e salvam vidas, mas a sua banalização e realização quando não existe uma real indicação e sem que haja desejo materno se caracteriza como Violência Obstétrica, além de dos outros exemplos que já foram citados", conclui.